Críticas a Late Night With the Devil, de Cameron Cairnes e Colin Cairnes

EquipaDezembro 10, 2024

Chega-nos enfim, com um enorme atraso, Late Night With the Devil, largos meses após ter sido um dos filmes de abertura do IndieLisboa (em Maio de 2024), e já longe do estatuto de “filme-sensação” que chegou a ter nas redes sociais. Protagonizado por um grande David Dastmalchian, uma estranha incursão nocturna pelo formato televisivo dos anos 70. Quatro tribunos deixam-nos aqui a sua crítica.

Artigo publicado parcialmente a 12 de Julho de 2024

Para um filme que depende tão funcionalmente do seu conceito, é desapontante que Late Night With The Devil não tenha muito mais a oferecer a não ser as suas referências. Como forma de apresentação de informação que poderia ter sido oferecida de forma mais natural, somos presenteados com um newsreel inicial que explana os factos em torno de Nite Owls: David Dastmalchian é o eterno segundo classificado, em busca de relevância no mundo dos talk shows, marcado pela recente morte da mulher, e envolvido numa nebulosa associação com um culto misterioso. A mera existência do newsreel, necessário que é para os Cairnes como veículo informativo, retira desde logo credibilidade ao conceito do filme enquanto broadcast. Contudo, a partir daí, a inspiração de Ghostwatch (1992) enquanto base conceptual é titânica. A força desse filme reside sobretudo na formalidade identitária, tão intimamente próxima que estava de um qualquer talk show da BBC, ao ponto de convocar chamadas de pânico para a estação durante a sua exibição, qual emissão do War of the Worlds de Welles. Por seu turno, Late Night With The Devil recria algo que podemos apenas imaginar como plausível. O design de produção, o guarda-roupa, o acompanhamento sonoro, os trejeitos de linguagem televisiva, são todos suficientemente plausíveis, mas não ajudam a elevar o seu conceito. Com essa base, os Cairnes passam o tempo a fazer tempo até à concretização de um terceiro acto tão obviamente desprovido de imaginação que parece atirar todo o barro que pôde encontrar à parede. A sua utilização da inteligência artificial acaba por ser paradigmática de uma ausência global de ideias para lá das referências.

Hugo Dinis

 

Conversas com o Diabo é uma proposta, na sua face, apelativa: um filme de terror ambientado no universo dos talk-shows norte-americanos dos anos 70, que usa uma estética retro-kitsch para contar uma clássica e horripilante história de possessão demoníaca confinada às quatro paredes de um estúdio de televisão. Infelizmente, e ainda que resulte a espaços, acaba por não convencer no quadro geral, resultado de uma dupla de realizadores relutantes em se comprometerem com a sua própria ideia — facto que em si espelha a natureza algo contraditória do exercício.

Há muito um dos mais subvalorizados character actors norte-americanos, David Dastmalchian dá ao filme o seu centro de gravidade, interpretando de forma sóbria e verosímil um apresentador no limite dos seus 15 minutos de fama e disposto a tudo para aumentar a sua audiência. O décor apropriadamente de época é outro ponto a destacar, mas infelizmente, essa autenticidade esbarra numa linguagem visual e num ritmo demasiado contemporâneos. Parece menos uma “cassete pirata” dos tempos do VHS e mais um filme moderno passado a filtro de Instagram, facto que não é ajudado pelas sequências de bastidores, filmadas a preto-e-branco num registo de câmara ao ombro que, apesar de narrativamente interessantes, se afiguram como uma maneira de Colin e Cameron Cairnes contornarem as limitações que o conceito lhes impõe.

Isto porque Conversas com o Diabo é um filme demasiado consciente de si mesmo. Nota-se uma vontade dos cineastas em assinarem um filme “de culto”, destinado a ser reclamado como um “clássico de meia-noite” na linhagem dos filmes de série B do passado. O problema é que essa é uma lógica contraproducente: o verdadeiro cinema de culto raramente quer sê-lo, e o melhor camp é quase sempre acidental. Da maneira que está, é leve, entretém e teria sido um complemento digno ao calendário de visionamentos de Halloween (o porquê de só estrear em dezembro é um mistério ao qual só a NOS Audiovisuais, que distribui o filme em Portugal, poderá responder), mas é demasiado “arrumadinho” e seguro para ser algo mais.

André Filipe Antunes

 

Throwback aos anos 70, um tempo áureo para as imagens granuladas na TV, para os programas de entrevistas noturnos, para a picardia por audiências. Misture-se aqui um cheirinho do sobrenatural e de um pré satanic panic que nos anos 80 havia de deixar a América com os cabelos em pé e temos uma mistura com potencial de grandeza.

Conversas com o Diabo parte, assim, de uma posição de vantagem. Com um puzzle gostoso de elementos e uma premissa intrigante – um found footage do episódio banido de um talk show que correu terrivelmente mal – e um burburinho inicial bastante positivo, era difícil não haver entusiasmo para este filme. Contudo, o produto final não cumpre inteiramente o que as suas partes prometiam.

Do ponto de vista visual, o filme está, na sua maioria, bem conseguido. Os tons âmbar ligeiramente indefinidos da imagem, a música e o set design típicos da época ajudam a transportar-nos para a década de setenta, assim como o leque colorido de convidados que vão aparecendo no talk show de Jack Delroy – um apresentador desesperado por subir as audiências. Desde o cético ao mentalista estilo Uri Geller, somos expostos a um pouco de tudo – de forma caricaturada, é certo, mas não muito longe do que se poderia esperar de um talk show norte-americano dos anos 70. Estes elementos posicionam-se muito bem para que a sátira às táticas sensacionalistas empregues por este tipo de programas seja eficaz. Em Portugal, ainda vemos ecos disto, embora mais na televisão diurna. Entre médiuns, vendedores de banha da cobra e analistas criminais em histeria, vale tudo na guerra pelas audiências.

Talvez por ser satírico, o filme perde pontos na eficácia dos sustos que pretende oferecer. A tensão não consegue ser levada a sério no meio do exagero, o que mina o potencial de verdadeiro terror que o filme poderia ter. No entanto, algumas cenas parecem sugerir que o filme nunca quis ser realmente assustador ou perturbador, mas antes uma homenagem a um terror de choque visual hiperbólico, que atinge o seu clímax no terceiro ato do filme. Apesar de arriscar desfazer o que os primeiros dois atos conseguiram, se conseguirmos acompanhar o filme nessa volta de 180º, o terceiro ato acaba por ser talvez o mais divertido. O filme não tem medo de acabar de forma quasi-aburda – teria sido bom que se tivesse mantido nesse espaço liminar de surrealismo por mais tempo.

O desmoronar do carismático Jack Delroy na sua sede por audiências ajuda a manter a coesão entre as diversas set pieces do filme, ou não fosse ele a personificação do ponto de interrogação que permeia o filme – que preço estamos dispostos a pagar pelo sucesso? David Dastmalchian, no papel deste apresentador sempre sedento de “mais”, entrega uma performance irrepreensível, ainda que não acompanhada pelos restantes membros do elenco.

Apesar de o equilíbrio entre a seriedade e a paródia não ser muito bem conseguido, Conversas com o Diabo não deixa de ser um filme interessante pelos pontos que aborda e a forma como o faz. Sem medo de usar o shock value típico dos anos 70, só lhe faltava ter conseguido gerar uma tensão eficaz. Aí sim, teríamos um filme dos diabos.

Carla Rodrigues

 

Late Night With the Devil está longe de ser perfeito, mas consegue capturar, com muita segurança, a essência do sensacionalismo dos talk shows nocturnos americanos dos anos 70 cujos corolários se mantêm até aos nossos dias. Existe obviamente (e necessariamente) um comentário social interessante a ter em conta, à medida que Jack Delroy (interpretação ao estilo série B icónica para David Dastmalchian) procura trazer ao seu programa, ao qual assistimos em tempo real, convidados cada vez mais polémicos. No entanto, este comentário social, felizmente muito mais satírico que crítico, é a parte menos interessante que Late Night With the Devil tem para oferecer. Apresentado nesse formato original, talvez único, observamos o desenrolar do programa ao vivo, sob a condução do seu anfitrião, dentro do apetitoso tema de Halloween. As regras dos filmes de culto de baixo orçamento são respeitadas e admiradas pela dupla de realizadores Cameron e Colin Cairnes, tudo se compondo para uma viagem assustadora e divertida, como se de uma montanha russa de parque de diversões se tratasse. Os efeitos especiais práticos, e também o CGI algo frouxo, irão satisfazer os fãs do género. O grande pecado do filme será talvez o seu final, que está claramente a mais e não encaixa no espírito do filme devido à sua mudança de registo, mas ainda assim não é o suficiente para estragar a coragem crua e a criatividade do filme. Uma ode à estética televisiva dos anos 70 e ao cinema de género que muito provavelmente se irá tornar filme de culto, e que leva aqui uma nota provavelmente inflacionada mas com a confiança de que o tempo lhe fará justiça.

David Bernardino