Críticas a Hundreds of Beavers, de Mike Cheslik

EquipaAbril 28, 2025

Um épico sobrenatural de Inverno, no século XIX, onde um vendedor de aguardente bêbedo tem de passar de “zero a herói” e tornar-se no maior trapper [caçador de peles] da América do Norte, derrotando centenas de castores. Hundreds of Beavers é a primeira longa-metragem de Mike Cheslik. Uma comédia slapstick muda, a preto e branco, que evoca “os Three Stooges, Disney, Fleischer, Abbott & Costello, Charlie Chaplin e Buster Keaton”, ou mesmo Super Mario e Jackie Chan. Aplaudido pela crítica e pelo público, o filme teve uma distribuição invulgar, com uma curta passagem em sala e presença sobretudo em festivais. Em Portugal, foi exibido no HahaArt, em Outubro de 2024, e na semana passada no Cinema Passos Manuel, no Porto. Está agora disponível na plataforma Filmtwist. Relembramos a crítica de David Bernardino, à qual juntamos a opinião de Laura Mendes.

 

Numa época de remakes e sequelas e reimaginações de todos os tipos do cinema do passado, Hundreds of Beavers parece tapar um buraco que faltava e que dificilmente se compreende que ainda existisse. Serão, como a sua tagline, talvez mesmo milhares (!) de castores. Num verdadeiro híbrido live action com animação, e claramente poucos meios, o filme de Mike Cheslik assume os contornos do humor do cinema mudo (bem como as suas cores: preto e branco, claro), movimentos marionetistas, como Chaplin, aliando-se aos gags dos cartoons americanos da idade de ouro dos anos 50, tais como os Looney Tunes, Tom & Jerry, ou outros de Tex Avery. Hundreds of Beavers é um filme completamente louco, previsível na forma, mas imprevisível na narrativa à medida que acompanha um caçador de peles do séc. XIX norte-americano e a sua busca por troféus peludos numa imensidão branca de neve. Os animais são actores mascarados, como se de um episódio de Trigger Happy TV se tratasse. Se é verdade que a fórmula parece esgotar-se no seu primeiro terço, a narrativa estoicamente combate essa repetição, adicionando camadas e camadas de…castores, deliciando o espectador. O que é afinal um grande filme de comédia? Parece difícil justificar que Hundreds of Beavers não o seja. Após 108 minutos de estupefacção e gargalhada fica o sentimento que uma segunda visualização será ainda melhor. Um filme de comédia audaz, visualmente difícil de aceitar, de tão idiota que é, mas de elevadíssimo efeito. Não há como escapar à evidência de que se existe bom cinema de comédia, este será certamente um dos seus melhores exemplares.

David Bernardino

 

Uma viagem lúdica de regresso ao humano primitivo – do excesso e delírio do álcool à reaprendizagem ancestral da sobrevivência na natureza – por intermédio de castores, tão desenvolvidos como a espécie que mimetizam e parodiam. Hundreds of Beavers é indubitavelmente único. Ainda que surja em diálogo, num tom de homenagem, com aquilo que foram os primórdios do cinema (cómico), está, seguramente, a redefinir – ou, pelo menos, a obrigar-nos a estar perante – aquilo que é um novo humor, apelando ao nosso sentido de contemporaneidade.

Se em Charlie Chaplin ou Buster Keaton assistimos ao comentário humorístico voltado para a modernidade, utilizando elementos da vida que, mesmo que fantasiados, ambicionam, até certo ponto, o estatuto de real, de forma a apelar a um público ainda não saturado dos mecanismos e artimanhas do cinema – as também neste filme presentes engrenagens de Chaplin ou os cenários a desabar de Keaton –, em Hundreds of Beavers aquilo que mais desperta a gargalhada é a total abertura em relação à também total artificialidade, para não dizer falsidade, do que estamos a ver. Para além de mesclar uma animação ilusoriamente infantil na sua realização – e esse é o ponto de partida –, brincando com a ambiguidade dos sentidos, são, de igual forma, os animais antropomorfizados, não só nas suas ações, mas na sua essência (pessoas declaradamente em fatos de animais, até um cavalo desengonçado com uma cara humana!) ou a inverosimilhança das situações pelas quais o protagonista tem de passar, que atestam o absurdo; apoiando-se nas condições do tempo em que vivemos – um tempo paradoxal caracterizado pelo desencantamento, tendo em conta o avançado conhecimento de que dispomos, e pelo simultâneo desejo de acreditar em algo umbrático –, não deixa de provocar um riso pueril e ingénuo: regozijámo-nos com a efabulação exagerada, sabemos que nada é real, mas é aí que encontramos o fulcro que nos convida a aceitar, de braços abertos, a exposição do ilógico. Ao contrário dos seus precursores, porém, é quase impenetrável a nota crítica (se partirmos do princípio que, algures, o cinema ainda resiste como reflexão, nos dois sentidos da palavra, de um mundo a perscrutar) que, potencialmente, existe neste filme – as apressadas frases-chavões proferidas por grandes figuras da história da humanidade, que surgem como interlúdios, apontam para uma era atual (talvez intemporal) do nonsense, da apropriação anacrónica e risível? A discreta história de amor que conquista, repentinamente, a centralidade: o seu valor restringe-se apenas ao percurso do herói?

Beavers recupera a corporalidade e a gestualidade cómicas, exercícios já muito experimentados, mas que conseguem ser ainda eficazes – a mulher por quem Jean se apaixona, como se no papel de espectadora, acha somente graça aos trambolhões desajeitadamente dados pelo mesmo. Apesar de ser capaz de uma constante inventividade nas peripécias apresentadas, e de uma consistência e coerência dignas, chega a ser dolorosa a imposição do riso; a repetição é importante para a própria narrativa, que vive da dinâmica tentativa-erro (já que evoca, também, o universo do jogo, com os seus desafios e recompensas), mas torna-se difícil o acompanhamento do perpétuo e extremamente veloz desenrolar de atividades gratuitamente engraçadas.

Verifica-se uma desconstrução do cinema, mas ao serviço de quê? Uma ecologia camuflada e um apontamento ténue acerca dos feitos da humanidade e das suas consequências é o que resta de um filme que, apesar de envergonhado, não deixa de proporcionar uma sincera ocasião de encanto, especialmente nos momentos (os seus melhores) em que adquire traços surrealistas que, deveras, surpreendem.

Laura Mendes

 

Disponível em filmtwist.pt – o primeiro serviço de streaming em Portugal dedicado ao cinema fantástico e de culto.