Thriller de terror psicológico, realizado por Scott Beck e Bryan Woods (A Quiet Place), Heretic conta com um inquietante Hugh Grant, que aterroriza Sophie Thatcher e Chloe East. Trata-se de uma abordagem “adulta” ao tema da religião, num contexto de filme-pipoca, nas palavras do próprio Woods (em referência a clássicos como Contact, de Robert Zemeckis, e Inherit the Wind, de Stanley Kramer). Um filme distribuído pela casa-mãe do “elevated horror“, a A24. Três críticos da Tribuna foram vê-lo e deixam-nos aqui as suas impressões.
Sinopse : Duas jovens missionárias são forçadas a dar prova da sua fé quando batem à porta errada e são recebidas por um diabólico Sr. Reed, ficando presas no seu jogo cruel de gato e rato. (A24)
Scott Beck e Bryan Woods conseguem inserir no mesmo cálice os Radiohead, a Bíblia Sagrada, o Monopólio e duas jovens missionárias que batem à porta errada. Neste cocktail pseudointelectual são também servidos os propósitos e despropósitos dos Mórmons, do Cristianismo, do Judaísmo, do Islamismo e do Budismo, ao som dos The Hollies. Que posteriormente são plagiados pelos Radiohead, e estes pela Lana del Rey. Tal e qual como a A24 que na sua tentativa de subversão, acaba por ficar presa às suas próprias convenções, repetindo cenários e imagéticas obsoletas. No seu lado mais contemplativo, Heretic tenta responsabilizar a educação parental, a submissão ao culto e a abstenção como guia espiritual como refúgios para a crença, condenando a fé inabalável mas aproveitando-a como mote para o terror físico e para um considerável desconforto psicológico. Aqui reside a vilania do argumento, tal como as religiões que na sua multiplicidade se vão tornando verdadeiras encruzilhadas de fé e de falta dela. Por isto, Heretic é um eloquente sermão dado não numa igreja mas numa cave cheia de profundezas cujas saídas de emergência só poderão ser o ateísmo ou o agnosticismo. É um filme que pretende questionar o inquestionável e que, tal como a religião, ensina-nos a fazer perguntas mesmo não havendo respostas. Não se trata de retórica, é mais um monólogo de Hugh Grant sobre doutrinas equiparadas a jogos de tabuleiro. Porém, só é de lamentar que o debate teológico se torne menos relevante à medida que a narrativa avança. Toda a abordagem inquietante e perturbadora sobre a crença e a descrença perdem interesse com o avanço dantesco da acção, passando de um filme de terror psicológico a um thriller padrão, que se torna ele mesmo infiel a si próprio.
Rita Cadima de Oliveira
É difícil ver Heretic em 2024 e não sentir que provavelmente teria sido um êxito maior por volta de 2005 e a personagem de Hugh Grant elevada a uma espécie de herói de culto. Este confronto maioritariamente retórico entre ateísmo e religião faz de Heretic um filme necessariamente mais expositivo do que demonstrativo, e muito do suspense que de facto aqui funciona é fundado na base do elemento conversacional. A personagem de Grant é, de resto, retirada algures do reddit r/atheism e moldada em torno de figuras como Dawkins ou Hitchens, apostada em convencer o espectador, mas sobretudo duas jovens mormons, da valia dos seus argumentos. Ficamos, por convenção cinematográfica, à espera de uma qualquer revelação do seu passado que explique esta sua obsessão com o discurso de fé, um qualquer trauma de infância ou perda do cônjuge, mas esta nunca surge. O deus ex machina é, na verdade, prevalente em muita da segunda metade de Heretic, explicado que está o seu fundamento de religião por parte de Grant. E é a partir da exposição da sua premissa, esta espécie de jogo sádico de fé, em estilo Saw ateu, que Heretic esbraceja na procura de rumo e significado. Com efeito, enquanto Grant está à frente da câmara, Heretic, não sendo extraordinariamente competente ou consistente, consegue ser quase sempre interessante. A viagem de fé das jovens, desabada que aparentemente está após o seu primeiro contacto com a avalanche de factos e lógica de Grant (não particularmente factual e de lógica em modo rolo compressor), é pautada pela relegitimação. Afinal estamos em 2024 e não em 2005, a zeitgeist é outra, e a heresia está fora de moda.
Hugo Dinis
Um daqueles chamados “filmes conceito” em que duas jovens missionárias visitam um misterioso cavalheiro, Hugh Grant, lobo em pele de cordeiro, para serem filosoficamente confrontadas pela sua fé. A exposição de Heretic é fantástica, de grande cadência, procurando o tal “elevated horror” contemporâneo que a A24 parece ter, de certa forma, criado. Apesar dos elementos de terror, Heretic será antes um thriller filosófico que irá deliciar os mais impressionáveis, procurando questionar, jogar, com o tema da religião em formato jovem, não fossem as duas protagonistas a materialização do provável público alvo de Heretic. Hugh Grant está em ponto de rebuçado, diabólico, ambíguo, mas também exagerado, procurando essa aprovação transgressiva que faz o copo verter ligeiramente. O filme vai evoluindo de set piece em set piece, de cliffhanger em cliffhanger, motivando o espetador para descobrir junto das protagonistas o que se esconderá atrás de cada porta da misteriosa casa. É aqui que constatamos a influência que o recente Barbarian tem e terá na estrutura de um certo terror americano do presente. Mas apesar de tudo isso, e de habilmente escapar aos jump scares em favor da criação de uma atmosfera de desconforto e mistério, Heretic tem dificuldade em estabelecer o seu tom e lógica. Damos de barato que o filme não seja minimamente credível, sendo antes engenhoso, parecendo procurar justificar a cena anterior de uma qualquer forma possível e não plausível. Isso retirará a gravidade ao filme de Scott Beck e Bryan Woods, com uma conclusão negra e violenta (piscando o olho ao horror extremista do francês Martyrs, muito menos impressionante, claro) que, quando surge, terá já perdido o seu momento. Tudo isso não retira os méritos a Hugh Grant (é aqui que o actor parece sentir-se bem) e à capacidade de entretenimento do filme, delicioso, mas demasiado fácil de ingerir.
David Bernardino