Críticas a Here, de Robert Zemeckis

EquipaDezembro 26, 2024

30 anos depois de Forrest Gump, Robert Zemeckis volta a reunir os atores Tom Hanks e Robin Wright, o argumentista Philip Roth e o compositor Alan Silvestri para um projecto cuja acção comporta várias décadas. Contudo, em vez de se focar em acontecimentos de charneira da história americana, Here, adaptação da novela gráfica de Richard McGuire, confina-se a uma única parcela de terra e aos seus habitantes, desde o tempo dos dinossauros até ao século XXI. O recurso a um (quase) permanente plano fixo de uma sala de estar, subdividido em painéis geométricos que sobrepõem eventos de diferentes períodos temporais, propõe contar a história de um país e dos seus cidadãos a partir do âmbito doméstico. Este dispositivo, juntamente com o uso de técnicas computorizadas e de inteligência artificial para mostrar os atores mais novos e mais velhos, não tem colhido consenso junto do público, mas constitui uma abordagem inusitada de um dos maiores artífices da história do cinema. Vejamos o que têm a dizer os quatro tribunos que já assistiram ao filme.

 

“Viver é melhor que sonhar”

Como os nossos pais ou a arte de correr sem sair do mesmo sítio. Êxitos musicais e notícias do mundo assinalam a passagem do tempo lá fora, na casa dos Young. Ao longo de aproximadamente 60 anos, 3 gerações desta família vão viver ali, juntamente com os fantasmas do passado e uma família futura que, na mesma sala, veremos sonhar e rir, mas sobretudo temer e amargar. E se é certo que há muito a unir os americanos do passado aos do presente (o medo, a alegria, a associação familiar, o comunismo da carne que começa a desintegrar-se a partir do nascimento… enfim, tudo o que nos faz humanos), Here mostra-nos duas Américas muito distintas, separadas essencialmente pela participação do país na 2ª Guerra Mundial. Uma do positivismo, da transformação política, do desenvolvimento tecnológico e económico – que vai do gérmen da revolução que a tornaria independente, ao espírito aventureiro de aviadores, sufragistas e inventores/empreendedores – e outra da estagnação e do pessimismo, do desnorte que reduz o espírito dos cidadãos ao seu papel de consumidores, contribuintes, proprietários, pais e mães. À incapacidade de viver uma vida para lá do fechamento ideológico em normas e rituais sociais, que constrangem sonhos e impedem o potencial humano de se cumprir.

O dispositivo formal do filme – um quase permanente plano fixo, ao qual se vão sobrepondo janelas para outras épocas no mesmo espaço – é eficaz a relevar esta prisão humana: a noção de que o tempo passa por muitos de nós, sem que nós passemos por ele (pelo menos até já ser tarde). Ao mesmo tempo, é a partir desta abordagem que em ligações mais ou menos subtis se estabelecem nexos de causalidade para a erosão espiritual da América contemporânea (lembremos, por exemplo, o Mayflower a chegar em forma de camião de transporte de mobília ou o anúncio do bombardeamento de Pearl Harbor, numa telefonia dos anos 40, a transformar-se na estática de uma televisão que ilumina o sono alcoolizado de um veterano de guerra) e se justifica a sua degenerescência moral. O diálogo de um homem negro com o seu filho, sobre como agir ao ser parado pela polícia, pode não ser elegantemente encadeado na narrativa, mas é a consequência lógica de anos e anos de formatação de indivíduos para jeitos incompletos, fechados e imediatistas de sobrevivência: uma sociedade atomizada e polarizada.

Se a nostalgia que tanto (e de forma tão pejorativa) se tem apontado a Here existe, é pela “primeira” América e não pelas canções, pela equipa de Forrest Gump (com o qual este filme partilha muito pouco) ou pela estética e referências pop de diferentes décadas do século XX. Menos interessado em contar-nos o que aprendeu nos discos e muito mais em pensar o que aconteceu consigo e com os seus, Robert Zemeckis compõe um (literal) quadro amargo da geração dos seus pais, e da sua própria, onde a vida só é tolerável através de doses generosas de auto-engano e se traduz apenas numa nova iteração do molde anterior. A tosca imagética computorizada assenta que nem uma luva nesta noção de vida familiar enquanto performance. Assume a vivência contemporânea da classe média como um simulacro e observa a tensão constante entre o desejo e o medo de o quebrar. A ambiguidade do plano final é o corolário destas forças opostas e esconde, sob a forma de açucarado xarope, o mais indigesto dos comprimidos, quando uma diminuída Robin Wright, a incentivo de um bem-intencionado mas nocivo Tom Hanks, afirma o seu amor por um lugar do qual passou anos a tentar fugir. O subúrbio sirkiano encontra a paz podre da aceitação orwelliana. A câmara move-se, por fim, deixando Hanks e Wright fechados numa casa que, à distância, nos aparece igual a tantas outras. Quantos sonhos cabiam naquele subúrbio? Quantas vidas por viver em pleno? Lá fora, no chilrear de um pássaro, a natureza acena-nos com a mesma indiferença do meteorito com que extinguira os dinossauros, milhões de anos antes.

Gil Gonçalves

 

Robert Zemeckis é um realizador fora do seu tempo. Numa sociedade (e cinema) contemporâneos onde a alienação e o cinismo imperam, o otimismo pop à la anos 80 do autor de êxitos intemporais como Regresso ao Futuro ou O Náufrago constitui hoje uma sensibilidade ultrapassada e fora de moda. Neste contexto, Aqui surge como um “ajustar de contas” com o passado, reunindo a equipa criativa de Forrest Gump para uma meditação sobre a impermanência e o envelhecimento, alicerçado em mais um dos seus já característicos truques tecnológicos — o filme conta as suas várias histórias a partir de um lugar fixo, sem mexer a câmara e fazendo uso extensivo de efeitos visuais para ir desde os dinossauros à pandemia de Covid-19. Contrariamente às expectativas, o resultado acaba por ser o melhor Zemeckis desde, pelo menos, Decisão de Risco, e um retrato tocante (e ocasionalmente desequilibrado) da vida na Terra contada essencialmente a partir de uma sala de estar.

Tom Hanks e Robin Wright ocupam o centro nevrálgico da narrativa, rejuvenescidos com recurso à inteligência artificial e ao mesmo tempo retomando a química de há 30 anos. É verdade que o efeito estranha-se mais do que se entranha, assim como o melodrama açucarado e subdesenvolvido dos vários side stories ameaça a vários pontos afundar a ideia. Contudo, no seu melhor, o conceito essencialmente teatral e qualidade dos protagonistas encontram a intimidade e subtileza do material, elevando-o a algo superior à soma das suas partes. Subjacente a isto está uma melancolia latente, que corre por todo o filme e parece rejeitar a ingenuidade meritocrática de Gump em busca de verdades mais difíceis. Não, por mais que nos esforcemos nem sempre conseguimos o que queremos, estamos limitados pelas nossas circunstâncias e há sempre muito que fica por fazer. Mas aos 72 anos, Zemeckis parece dizer-nos: importante é não nos definirmos pelos nossos arrependimentos, mas antes pelo que fazemos com o tempo que temos.

André Filipe Antunes

 

O encadeamento do filme (é difícil falar de “montagem”, num objecto materialmente tão artificial) é quase perfeito. Nada nos salva, porém, da estética publicitária das suas imagens. Se a comparação com Wavelength (Michael Snow, 1967) é interessante (e aliciante), aquela realidade ilustrada a partir de um gesto digital (e tecnológico) relembra mais adequadamente 24 Frames. O cinema enquanto pobre imitação da vida, Here é, ainda assim, muito menos foleiro do que o último filme de Kiarostami, sendo transportado pelo sentimento comum que identificamos naquelas vidas que entram e existem naquele espaço, onde “todo” o tempo daquele mundo parece convergir. Se o propósito moral da arquitetura será o de parar o tempo, o valor base do cinema será, especificamente, a passagem do tempo. Mas e então, se a vida realmente é aquilo que acontece enquanto pensamos “noutra coisa”, será a mais sincera desesperança que assombra, afinal, este filme, cujas histórias (pessoais e familiares) parecem construídas de sistemáticas derrotas – cedência, lapso e renúncia. Como aceitar as lágrimas finais de uma Robin Wright em estado avançado de demência, qual redenção do velho Hanks, senão como a mais cínica máscara de “sentimentalismo fácil” a um retrato dos sonhos desfeitos de uma América suburbana? Ambíguo.

Miguel Allen

 

Por muito que os resultados sejam divisivos, não há como negar a curiosidade desta fase tardia da carreira do realizador norte-americano Robert Zemeckis, nomeadamente na predominante utilização de CGI na encenação dos seus filmes. Responsável por êxitos como Forrest Gump, Back to the Future ou Cast Away, tem sido a dialética entre a tecnologia e o melodrama que resultados mais interessantes tem gerado nos últimos anos da sua carreira. A premissa de Here tem tanto de cativante como de ambicioso e até, poderemos dizer, de lamechas, terreno portanto plenamente fértil para a mente de Robert Zemeckis. O filme decorre permanentemente no mesmo plano da mesma sala de uma singela moradia, atravessando o período jurássico (sim, temos mesmo dinossauros) até à atualidade. O cineasta faz-se valer das potencialidades do digital para compor o seu retrato dos (melo)dramas familiares americanos que vão habitando aquele espaço físico em concreto ao longo dos anos. Tal como Robert De Niro em The Irishman de Martin Scorsese, Tom Hanks surge rejuvenescido, um efeito que não é minimamente acompanhado pelos movimentos do seu corpo, que permanecem rígidos. Como se no corpo de Hanks se condensasse também a força da passagem do tempo. Here é um filme que nos deixa com um sentimento agridoce, conjugando as várias camadas de amargura que assolaram a vivência daquela sala com a esperança da preservação das memórias felizes, proporcionada pelos momentos finais, onde por fim conhecemos o contraplano da sala e existencialmente colocamos o espaço, o tempo, a realidade e o cinema em perspetiva.  

Bruno Victorino