Num mundo onde a humanidade parece ter desaparecido, um gato preto tenta sobreviver à subida abrupta das águas, formando uma curiosa equipa com outros animais “perdidos” que vai cruzando pela sua viagem. Sem diálogos e com uma narrativa algo “aberta”, Flow (ou Straume, no título original em letão) foi, pela sua estética, uma curiosidade no cinema de animação do ano passado, e um relativo sucesso de bilheteira. Um trabalho pessoal de Gints Zilbalodis (após uma primeira longa-metragem, Away, realizada quase individualmente) e do seu Dream Well Studio, o filme foi apresentado na secção Un Certain Regard do festival de Cannes, e passou pelo Motelx em Setembro passado. Três críticos da tribuna foram vê-lo.
Flow é um daqueles filmes que parecem existir numa frequência própria, ligeiramente deslocados da nossa realidade, mas tornando-se de alguma forma mais autênticos por isso. Criado pelo Dream Well Studio, na Letónia (uma origem, talvez, inesperada, num mercado mais preenchido por animação norte americana ou asiática), este poema animado acompanha um gato independente e solitário que vê o seu refúgio ameaçado por uma inundação. Sem grande escolha, a sua única opção é partir à boleia num barco que surge do nada, juntando-se a outros animais apanhados pelo caminho. O destino é incerto, mas a viagem impõe um desafio inevitável: a convivência.
É nessa convivência silenciosa que o filme encontra a sua força. Flow não precisa de diálogos para nos cativar. Na verdade, seria quase um sacrilégio se os tivesse. Porque este é um filme que confia no poder da observação, no modo como cada arregalar ou estreitar de olhos, cada movimento de um focinho ou de uma cauda pode transmitir mais do que mil palavras. Assim, sem nos guiar pela mão, a narrativa revela-se como uma meditação sobre a união, a pertença e as famílias que escolhemos, mas também sobre o que significa existir num mundo em constante mudança.
A experiência de ver Flow aproxima-se à de explorar um jogo de mundo aberto, onde a narrativa nos pede curiosidade em vez de respostas imediatas. A animação, belíssima, equilibra um realismo subtil nos movimentos dos animais com uma estética pseudorrealista que paira entre o tangível e o onírico. Esta tensão entre o que reconhecemos e o que estranhamos dá ao filme um ritmo próprio, uma dança entre distância e imersão. A câmara vagueia pelo espaço, paciente, oferecendo-nos apenas o suficiente para intuir o que vem a seguir. A ausência de explicações diretas amplia a sua força evocativa – a realidade está fragmentada, e cabe ao espectador preencher os espaços vazios.
E, no entanto, por mais suspenso que pareça este universo, há algo de profundamente essencial na sua mensagem. Num mundo instável, onde tudo se desfaz e reconfigura, Flow recorda-nos que a sobrevivência nunca é solitária. Cada animal traz consigo um fardo, uma identidade. Mas é apenas na aceitação mútua, na aprendizagem do outro, que podem avançar. No fim, não há epifanias grandiosas – apenas a constatação de que, juntos, conseguimos sempre ir um pouco mais longe.
Carla Rodrigues
Um filme de rejeição, Flow vai em larga medida contra as convenções actuais em torno do cinema de animação. A sua estética um tanto primitivista, abundantemente comparada com as animações de videojogos do virar do milénio como Myst ou Monkey Island, recusa liminarmente a texturização das suas criações, desde as personagens ao cenário. Não é fácil a habituação a um estilo de imagem tão característico sem que permaneça uma certa sensação de estarmos perante um artefacto do passado, mas é inegável o olho de Zilbalodis para a composição de ideias visuais impactantes. Por outro lado, numa altura em que abundam as animações antropomórficas de animais, Flow procura manter a ligação ao naturalismo como forma de segurar os animais no seu habitat. Mas Flow é também cinema de rejeição no que diz respeito à sua narrativa alegórica: muito embora estejamos perante um filme em larga parte em estilo de road movie, no qual cinco animais improváveis cooperam para sobreviver a um acontecimento que os ultrapassa, Flow recusa garantir aos espectadores pouco mais do que deixas face ao que à própria interioridade dos animais diz respeito. O gato que acompanhamos desde o início, primeiro em curiosidade, depois em fuga, e por último em comunidade, tem um voluntarismo incaracterístico que convoca a sua força de lider. Não é o mais forte nem o mais resistente, mas a viagem confere-lhe a ele uma certa responsabilidade moral de fazer o que está certo, seja a reunir comida para os outros, seja a recusar-se a deixar alguém para trás. Nem sempre a narrativa em Flow confere o verdadeiro sentido de aleatoriedade que um road movie pediria, pelo que a formação da improvável equipa tem tanto de espontâneo como de denunciado.
Hugo Dinis
A “estética PS2” dá um gosto especial ao filme, talvez. Mas tudo parece sofrer aqui de uma estranha ligeireza, e Flow nunca deixa de se assemelhar, claro, a um jogo de vídeo do virar do século. O grafismo também se adequa mal ao incessante movimento da “câmara” (e à montagem algo apressada entre planos), cujo “realismo” nos deixa a cabeça um pouco à roda. Por vezes, num filme que dialoga invariavelmente com outras imagens virtuais do nosso passado – as grandes colunas isoladas, os motivos meso-americanos sobre as ruínas, as montanhas de inspiração capadócia, que relembram em tudo paisagens de viagens que fizemos no nosso quarto –, é como se puséssemos a cabeça fora da janela do carro dos nossos pais e o mundo girasse à nossa volta. Mas parece importante que este filme exista sem palavras. O Gaspar (9 anos), porém, não gostou muito, disse “não perceber a história”… e é de admitir que, também de um ponto de vista narrativo, o filme segue uma lógica de jogo de vídeo, de algum facilitismo. Se o gato está quase a afogar-se, é a terra que se abre para engolir a água… Deixamos a baleia para morrer, mas no final vemo-la a nadar ao longe, como que salva por uma qualquer “magia” do cinema. O projecto ganha um valor sentimental importante pelo envolvimento de Zilbalodis em quase tudo o que faz o filme, é certo. Mas, por outro lado, é um filme que encontra o seu foco de interesse em algo que se assemelha a cinema, mas que nunca é “fundamentalmente” cinema.
Miguel Allen