Críticas a Estamos no Ar, de Diogo Costa Amarante

EquipaNovembro 16, 2024

Depois de realizar várias curtas-metragens premiadas (destaque para Cidade Pequena, vencedora do Urso de Ouro na Berlinale, em 2017), Diogo Costa Amarante estreia-se nas longas-metragens com Estamos no Ar. Este retrato inusitado de solidão e desejo, protagonizado por Carloto Cotta, Sandra Faleiro e Valerie Bradell, leva-nos pelas fantasias de 3 familiares, num caminho que entrelaça o real e o imaginário. Já nas salas portuguesas, foi visto por Gil Gonçalves e Miguel Allen, que nos deixam as suas críticas.

Sinopse: Fátima diz que não sente nada, mas sonha com o polícia que se mudou recentemente para o apartamento ao lado. Vítor, o filho, usa secretamente a farda do vizinho na expectativa de que o rapaz que conheceu online sinta alguma coisa por ele. Júlia, a avó, quer fugir do lar, mas sente-se cansada de andar às voltas para não ir a lado nenhum. Uma espiral de insónias e ilusões noturnas leva a mal-entendidos e relações impossíveis, todos em busca de um pouco de ar.

 

Vagas de desejo em corpos solitários, naufrágios de fantasia em mentes tolhidas. Se pudermos falar de um elemento aquático, em Estamos no Ar, teremos de pensá-lo em estado gasoso. Isto porque tudo o que move os 3 protagonistas – avó, mãe e filho – ocorre na esfera do intangível, deriva de ausências que reclamam a totalidade das suas vidas: um marido morto, encarnado no corpo de uma amiga do lar, um índice do desejado vizinho do lado na sua farda de polícia, à roda na máquina de lavar, o corpo do amado em danças lúbricas do outro lado de um ecrã de computador ou telemóvel. Diogo Costa Amarante atira-nos para obsessões que já vão em velocidade de cruzeiro, quando entramos no filme, e deixa-nos a juntar as peças de 3 mundividências distorcidas, cada uma com os constrangimentos típicos da respetiva faixa etária (o luto do companheiro de uma vida, os complexos com o corpo e a moral monogâmica, e os relacionamentos digitalmente mediados), num constante e deliberado jogo de segundos sentidos. Através de metáforas visuais e linhas de diálogo sugestivas, compõe-se o quadro da alienação moderna: uma solidão que, permanentemente inundada em estímulos e narrativas virtuais, aspira mais à fantasia do que à real conexão, reduzindo as relações humanas a permutas de corpos e identidades; a acordos tácitos de um prazer incompleto, porque sempre alimentado pela ficção que pretende atingir. Ainda que nem sempre com mão firme para segurar e organizar todas as ideias que tem, Estamos no Ar é um objeto artisticamente íntegro. Preocupado em pensar o seu tempo, mas com uma salutar busca pela intemporalidade, prefere sempre a subtileza de um plano rico em significado à exposição de ideias ou ao didatismo. Elevado pelas atuações superlativas de todo o elenco – plenamente confortável nas peles de personagens injetadas de vida – e pelas imagens da diretora de fotografia, Sabine Lancelin (habitual colaboradora de Manoel de Oliveira) – que encontram poesia no contraste entre o onirismo kitsch e a opressão de interiores “reais” – é uma chegada auspiciosa do cineasta às longas-metragens, e motivo de atenção para os seus trabalhos futuros.

Gil Gonçalves

 

Sempre que o Amor me quiser… Da fantasia e “do bruxedo”, rêveries sensuais por Júpiter de olhos ofuscados pelas luzes coloridas das montras no shopping. Pela noite adentro, naquela cidade saturada de segredos, até os fantasmas têm tesão. Três contos de três gerações sucessivas de uma família. E três histórias de amor, aquele que projectamos com a nossa paixão, e aquele que, generoso, vem cobrir um espaço deixado demasiadamente livre pelo desejo. Júlia (Valerie Braddel) invocou o marido falecido no corpo da sua melhor amiga no lar de idosos, mas está cansada deste triângulo amoroso; Vitor (Carloto Cotta), seu neto, sonha en rose com o garoto do dancing enquanto se esconde, à noite, na cisterna do camionista dedicado; e ao centro do quadro, Fátima (uma Sandra Faleiro ao alto), cabeleireira divorciada, imagina fantasias escaldantes com o polícia Leonel, ao som de Madalena Iglésias, fazendo apelo a um vizinho solitário. La flor de mi secreto, o amor e as suas máscaras, com figuras sentimentais que quase nos cantam “vou me banhar nesta luz, sentir a corrente a passar, e esquecer-me de mim” (Lena d’Água). Ao volante por uma cidade melancólica de tons vintage e arquitecturas dos anos 70, Estamos no Ar vive dessa “eterna saudade” que nos deixa o toque do outro como que impresso na pele. Embora culpado de ocasionais pecados de “primeira obra” (que perdoamos), um filme que, invocando objectos estranhos de outras filmografias mais pop, se inscreve num cinema nacional ao filmar o seu país através do colorido roteiro amoroso (ou sexual) que desenha de um Porto a três tempos. E se esse anseio nos pesa, escondamo-nos então na “arca do anjo” para poder sonhar, enfim, com as estrelas.

Miguel Allen