Críticas a Emilia Pérez, de Jacques Audiard

EquipaJaneiro 31, 2025

Indiscutivelmente um dos filmes mais odiados do ano, Emilia Pérez é também o filme com mais nomeações para os Óscares. Haverá já pouco que não tenha sido dito sobre este musical. Mas, apesar de ter estreado há já algum tempo, Emilia Pérez parece continuar a crescer nas salas de cinema portuguesas. A Tribuna deixa a sua opinião pela voz de quatro críticos.

Rita é uma advogada qualificada, mas desvalorizada, numa empresa que está mais interessada em branquear os crimes de bandidos do que em conduzi-los perante a justiça. Um dia, Rita é raptada por um cartel de droga, mas o seu líder, Manitas, contrata-a para o ajudar a retirar-se do narcotráfico e realizar um outro plano: a sua mudança de sexo.

 

A confiança e ousadia com que Emilia Pérez é executado não corresponde à forma desequilibrada como é recebido. Emilia Pérez tenta ser tudo, em todo o lado, ao mesmo tempo. Insere-se e afirma-se em demasiados géneros e subgéneros: do musical ao videoclip; do thriller ao crime; do drama à telenovela. As personagens baseiam-se em arquétipos semiconstruídos numa constante sedução e erotismo, que acredita servirem para manter o espectador envolvido, mas apenas o traumatizam. Jacques Audiard recorre de forma forçada a uma certa simbologia, querendo aparentar que domina as causas das bandeiras que faz esvoaçar, acabando por tornar Emilia Pérez num filme desagradável tanto em termos estéticos como temáticos. O realizador acusa alguma cobardia e desdenho no tom reaccionário que pretende ter sob o pretexto de audácia e acaba por se tornar incoerente. Os números musicais são completamente deslocados, as coreografias desproporcionadas, mas é sobretudo nas más interpretações das personagens que tem o seu calcanhar de Aquiles. A montagem é tão irregular que torna as imperfeições ainda mais evidentes, mais concretamente na forma como é prejudicado pela iluminação berrante e no mau uso da cor. A crueldade do filme, a sua cobardia e desdenho revelam alguma perversidade no argumento, nada tendo de humano ou empático, mesmo que haja uma falsa tentativa de o ser. A par disto, a teima num foco reacionário acaba por tornar Emilia Pérez num filme sem identidade, com pouca eficácia no argumento e incompetente em quase todas as suas vertentes.

Rita Cadima de Oliveira

 

Por onde começar com este Emilia Pérez, um híbrido musical com drama de narcotráfico mexicano e identidade de género, que parece querer chegar a todo o lado? Inicialmente parecemos estar perante um thriller criminal, adepto dos temas sociais quentes do nosso tempo, mas Emilia Pérez rapidamente mostra ao que vai: Zoë Saldaña, advogada que vive na sombra do seu chefe por razões de género e raça, canta e dança suspirando por dias melhores. Os dias melhores chegam na forma de um barão de um dos maiores cartéis de droga do México, que pretende mudar de sexo. Jacques Audiard aplica uma execução sofrível à sua mirabolante narrativa, que mais parece um desfilar de estereótipos insuflados e invertidos do que algum resquício de estudo de personagem, ou melhor, a famosa “desconstrução”, que o filme julga ter. Os seus momentos musicais são absolutamente sofríveis, pouco inspirados, forçados, monocórdicos, a roçar a vergonha alheia e a procurar uma provocação emocional baratucha, ao estilo da telenovela mexicana. Por baixo desse tiro ao lado que foi enxertar um musical neste papier mâché de géneros, até parece existir uma ideia de filme minimamente interessante, mas tudo é tão executado pela rama, em busca da mais elementar superficialidade moral (o assassino impiedoso, barão da droga, renasce como mulher e ganha, de repente, noção de moralidade, redenção e acção social?!) que fica complicado encontrar posição na cadeira para nos encolhermos. E o que dizer das interpretações? Selena Gomez é indescritivelmente má, fingindo-se de mexicana sem conseguir incorporar qualquer emoção de forma minimamente credível. Zoë Saldaña torna-se na figurante cantora que embarca na farsa, e Karla Gascón limita-se a encabeçar o estereótipo de ambas as suas personagens. Emilia Pérez é dolorosamente mau, uma piada de mau gosto, uma acrobacia. Não será certamente um filme.

David Bernardino

 

Ao ver boa parte da cobertura mediática de Emilia Pérez, a sensação que fica é a de um filme que está a ser menorizado pelas razões erradas. À primeira vista, Audiard parece ter feito um filme formal e tematicamente ousado, quer a visar uma mudança de sexo num mundo da criminalidade associado a masculinidade forçada, quer a optar por um formato de musical declarado. Embora sejam opções de ruptura, não é surpreendente que Audiard não consiga fazer de Emilia Pérez uma proposta verdadeiramente interessante, precisamente pela abordagem demasiadamente segura e previsível que aqui evidencia. Muito embora o filme lide com a mudança de sexo da sua personagem principal, ostensivamente acaba por ser muito mais uma espécie de novela sobre Emilia e os filhos no seu período pós-cirurgia. Esta abordagem parece apressar-se para retirar da frente o que de mais ousado e fracturante tinha o seu argumento para se sentar confortavelmente no pouso da novelização das circunstâncias, com pouco interesse ou viabilidade enquanto filme. Ainda para mais, Audiard sente dificuldades em transmitir exactamente porque é que Emilia é uma personagem tão adorada e reverenciada por quem com ela se envolve, seja a nível profissional, como a personagem de Zoe Saldaña, seja a título pessoal, como Selena Gomez. A convencionalidade acaba por se repercutir também na forma, com o recusar das potencialidades de um musical que pudesse maximizar as tendências absurdistas do material de origem. Nos seus momentos musicais, Emilia Pérez é um filme escuro, descolorido e pouco dinâmico, com muito poucos números verdadeiramente memoráveis.

Hugo Dinis

 

Emilia Pérez merece algum crédito pela ousadia de transformar um thriller narcocriminal—com aspirações a algo maior—num musical. Mas, por mais fora da caixa que tente ser, o filme não acerta no alvo. A tentativa de abordar identidade de género, crime, redenção e família, poderia, à partida, ser aliciante, mas os saltos de tom – do thriller ao melodrama estilo telenovela – acabam por ser mais desconcertantes do que envolventes. Emilia Pérez quis dar um passo maior que a perna e tropeçou, acabando a deslizar desajeitadamente por um lanço de escadas abaixo, numa queda lenta e embaraçosa que parece nunca acabar.

De pontos positivos, não se pode negar que o filme faz algumas escolhas arrojadas, e os atores entregam-se ao material com dedicação. Destaque para Zoë Saldaña como a advogada apanhada no turbilhão de vidas alheias: é refrescante vê-la atuar sem estar pintada de azul ou verde. Porém, isso não é suficiente para sustentar uma narrativa tão dispersa. As personagens são pouco desenvolvidas, os diálogos são artificiais e os temas, por mais relevantes que sejam, são tratados de forma simplista, como adereços para um espetáculo que nunca encontra o seu ritmo.

Visualmente, Emilia Pérez tem um ou outro momento interessante e uma confiança inabalável (e, infelizmente, muito exagerada). No entanto, o clique nunca acontece. Enquanto musical, Emilia Pérez é um falhanço. As canções – o sangue arterial de um musical – são pouco memoráveis, com letras desinspiradas e um pastiche de melodias corriqueiras. Havia aqui uma oportunidade genial para aproveitar a tradição musical do México como combustível para a parte musical – o que poderia dar, pelo menos, um sentido de identidade, de lugar, ao filme – mas tal não parece ter passado pela cabeça dos compositores.

Como musical, não funciona. Como exploração dos temas que se propõe analisar, não funciona. Emilia Pérez é uma obra que promete muito, mas que, no fim, não entrega. A sua ambição é evidente, mas a execução falha em tantos aspetos – da música aos personagens, passando pela estrutura narrativa – que o resultado é uma experiência desarticulada difícil de digerir.

Carla Rodrigues