Críticas a Eat the Night, de Caroline Poggi e Jonathan Vinel

EquipaJulho 31, 2025

O regresso de Caroline Poggi e Jonathan Vinel, seis anos após a aclamação com Jessica Forever (2018), longa-metragem de estreia do duo. Eat the Night (“Devorar a Noite“) fala-nos do fim do mundo pela janela de um jogo de computador. Um universo imaginário fantástico em colisão com uma vida de violência e desencanto numa cidade portuária da Normandia. Três críticos da Tribuna foram ver o filme.

 

DarkNoon Forever. Para a Geração Z, o fim do mundo parece mais próximo do que nunca. Caroline Poggi e Jonathan Vinel parecem compreender isso melhor do que ninguém. Mais importante ainda: conseguem exprimi-lo – neste caso, através da lente de um videojogo online cujos servidores estão prestes a ser encerrados definitivamente. Fantasia e realidade em rota de colisão. Acompanhamos a vida de dois irmãos, Pablo e Appoline, durante esse pesaroso período de contagem decrescente. Entretanto, no mundo do tráfico de droga em que Pablo opera, um ciclo de vingança entre dois gangues rivais toma proporções perigosas que ameaçam as vidas dos irmãos e dos seus entes queridos. Eat the Night é um filme agitado, intenso e sensual. Uma obra que explora o amor queer, os laços fraternos, as realidades virtuais, e a aquela angústia adolescente. Inverosímil por certo, mas divertido e ousado. É de realçar o facto que o DarkNoon que vemos os personagens jogar não se trata de um videojogo verdadeiro, mas sim de efeitos especiais que a dupla Lucien Krampf e Saradibiza criou para este filme. Verdadeiramente impressionante.

Pedro Barriga

 

Não encontramos a raíz vital de Eat The Night nas suas escolhas cinematográficas. Aliás, se este nos provoca com a contextualização inicial em ambiente virtual – o jogo Darknoon –, é para, logo a seguir, ocupar a maior parte do seu tempo entre parcas intrigas visualmente neutras. Uma diagnosticada inatividade fílmica para uma ambição conceptual interessante, mas em última instância desregulada.

Verdade é que a aposta no retrato contemporâneo e na pretensa abertura para com as suas fragilidades é uma valência. Porém, é também verdade que o filme se apropria desta atitude para criar uma história superficial onde os traumas familiares, sexuais, sociais ou económicos são inutilmente apontados – constituindo o cerne das problemáticas, ficam apenas como pano de fundo propositadamente disfarçado. Concebamos que o seu propósito seja a fragmentação: ainda assim, a perspetiva lacunar e a falta de antecedentes acaba por sujeitar todo o filme a insípidas cenas-modelo acompanhando rotinas marginais que muito pouco ou nada acrescentam à reflexão acerca de identidades individual e social contemporâneas.

O desmesuramento da violência e do tráfico e consumo de droga, o desmoronamento familiar são realidades palpáveis e que merecem atenção – o potencial da figura paternal capaz de atenuar o caráter robusto de delinquentes, ou o da mesma figura ausente na vida de Apo. No entanto, não é numa demonstração banal das suas configurações e efeitos, tampouco na evasão metafórica, aqui algo desconectada e apressada, para o âmbito da virtualidade, que se abrem as portas para a inovação envolvendo estas temáticas.

Apesar de tudo, a presença do jogo neste filme traz ao de cima o seu melhor. As narrativas de vingança e violência que consomem Pablo e Night ganham algum fulgor na correspondência que têm no jogo, funcionando este como um organismo vivo que se deixa contaminar pela realidade inflamada – como o demonstram as personagens do jogo progressivamente mais realistas –, sem nunca perder o tom onírico e simultaneamente derrotista. Darknoon é a esperança que vai travando, mas que finalmente possibilita, o apocalipse; a inocência apanhada no meio de graves perdas; é, especialmente, o habitat de cadáveres virtuais que são, afinal, apenas armaduras contra enchentes de dor. O paralelismo é riquíssimo, todavia a perscrutação foi insuficiente, já que permaneceu alinhada com alguma falta de radicalismo formal – à exceção do último momento, em que sentimos a aliança entre inovação e sentido.

À falta de uma abordagem cortante, deu-se o centrismo, a robótica sucessão de eventos marcados por uma sombra incaracterizável de maus agouros – um filme atmosférico, dir-se-ia, contendo por detrás dessa penumbra um brilho por captar.

Laura Mendes

 

Será algo imperdoável, mais ainda do que incompreensível, que grande parte do cinema dito radical de hoje se exprima sobretudo por motas verde-lima, e quase nada pela sua forma cinematográfica. Numa arte que permite uma escolha quase infinita de abordagens narrativas ao seu sujeito, é surpreendente que tanto se tenha feito para que regressemos hoje ao mais elementar e coerente “1, 2, e depois o 3” para contarmos as nossas histórias. Claro que a tradição, em si, não tem mal nenhum. Mas o valor político dessa escolha é inexistente quando resvala de um mero facilitismo na execução.

É nesse sentido que Eat the Night, o filme de abordagem mais “tradicional” (suspeitamos) de Caroline Poggi e Jonathan Vinel, se revela um filme determinadamente “desimportante”, um objecto cujas imagens berrantes recobrem a sua falta de atitude, a ausência de uma posição vincada por parte dos seus autores. A premissa narrativa de dois jovens cismados com o mundo virtual de um videojogo “prestes a fechar” (temos 60 dias até ao fim) é aliciante. O universo de DarkNoon, no qual caímos logo na introdução, é também o aspecto mais interessante do filme. Mas todos os passos dados para fora desse outro ecrã revelam-se afinal demasiadamente hesitantes, um terreno inevitavelmente menos confortável para um duo de realizadores que tanto teima em “inflamar-se” pelo seu cinema.

É uma dura realidade a daquele burgo portuário do Norte da Europa; não tanto pelo que nos contam, em desencanto, as personagens, mas sobretudo pela banalidade do cinema de Poggi e Vinel. Um estranho trio amoroso — Apolline (Lila Gueneau, que queremos ver em filmes melhores), Pablo (Théo Cholbi) e Night (Erwan Kepoa Falé), seu amour fou —, uma cidade como tantas outras, tráfico de droga e a expectável descida às problemáticas violentas desse submundo. Um thriller romântico também… como tantos outros. Sobe-se o volume dos sintetizadores e acelera-se pela estrada, mas o gesto não é firme; insiste-se, por atavismo, na homossexualidade desinibida, explícita, como postura rebelde (não nos distanciemos até Genet ou Fassbinder, mas já lá vão 15 anos desde o pénis erecto de Christophe Honoré e ainda andamos nisto?); experimenta-se uma abordagem pretensamente mais estilizada e clínica, sempre violenta, aos temas do noir.

Mas Eat the Night é muito como aqueles jantares que Apolline aquece distraidamente no micro-ondas: um grito contra um pai ausente que decora, atrapalhado, a árvore de Natal; um grunho de boné aos pontapés junto a um supermercado; um momento amoroso e descontraído ao som de um reggae enfumarado; uma espera ansiosa no hospital. Temos tudo isso aqui, como em qualquer outro filme. Ironicamente (porque involuntariamente),  a trama de Eat the Night faz-nos querer voltar a DarkNoon, onde, pela artificialidade exuberante das imagens, se consegue chegar, de facto, a algum lado. Esse “algum lado” pode até ser um “lado nenhum”, já o sabíamos. Mas chega para salvar, no seu desenlace mais forte, um filme que, sentimentalmente, parece sempre tão flácido quanto as suas investidas suburbanas.

Por hora de umas compras de Natal no shopping com Pablo e Night, vislumbra-se (acidentalmente?) o cartaz de Avatar: The Way of Water, que enchia as salas em Dezembro de 2022. E não será preciso ser o maior fã de James Cameron para encontrar, logo aí, um ponto de fuga inevitável a este cinema de Poggi e Vinel. Pelo paleio da dupla, vêm-nos à memória as palavras de Cézanne diante da sua Montagne Sainte-Victoire : “ces blocs étaint du feu, il y a du feu encore en eux.” Mas esse fogo que o pintor vislumbrara parece hoje extinto das nossas telas de cinema.

Miguel Allen