C’est pas moi, de Leos Carax: O Impulso Vital

Rafael FonsecaDezembro 16, 2024

 

I was a body at the funeral /
She had her hands all over me

Daniel Johnston

A primeira vez que fui ver C’est Pas Moi, era esta a situação: estava no banco de trás de um Uber, a caminho do Nimas, ao telemóvel a ver uma cópia de Holy Motors. É preciso compreender que a certo ponto da viagem estou a olhar para Denis Lavant dentro da limousine a ser conduzido no filme, enquanto eu próprio estou a ser conduzido na vida real, e estou a olhar para a nuca do meu motorista ao mesmo tempo que no filme Oscar olha para a nuca de Édith Scob, a Édith Scob de Eyes Without a Face – Les Yeux Sans Visage, 1960, Georges Franju. Durante alguns segundos, não por muito tempo, mas durante alguns segundos, o momento dentro do meu Uber teve uma força própria, muito presente. A entrevista marcada com Carax antes que este saísse de Lisboa tingia tudo de uma realidade profunda e irrepetível, os gestos adquiriam rimas irreconhecíveis, que já não conseguia prever: a chegar ao cinema, com um bilhete com o meu nome à minha espera num envelope, senti-me a mergulhar no terreno da autoficção. A desmarcação dessa entrevista marcou a manhã seguinte com o ascendente da lacuna, e senti forçosamente a necessidade de escrever, num artigo de grupo, um texto sobre C’est pas moi que se focava numa outra ausência, a de Bowie, apontamento final do filme, com o qual senti uma identificação intensa, pois também eu, como possivelmente Carax na mesma altura, procurei um significado escondido em ‘Lazarus’, em ‘Dollar Days’ e em ‘Girl Loves Me’, uma cifra oculta que revelaria um segredo deixado por Bowie, uma forma de evitar a (sua) morte – uma prestidigitação – colocada nas músicas de forma a não facilmente se perceber (por superstição, passei mais de um ano sem ouvir ‘I Can’t Give Everything Away’ – parecia-me algo que não devesse escutar até se cumprir algum tipo de etapa posterior que desconhecia). É inesquecível a primeira audição de ‘Blackstar’, os seus versos sobre um centro, divino e colossal, a jorrar em fonte sobre tudo. O desaparecimento cifrado de Bowie é um trauma colectivo, como a entrada de Gagarin no espaço. Aquando a morte de Manoel de Oliveira, Margarida Gil disse: “como se a Terra perdesse a camada de ozono”. Também nunca me esqueci dessas palavras.

Quando a Tribuna do Cinema me convidou a aproveitar o meu texto anterior para um artigo único sobre o filme, voltei imediatamente ao Nimas para o rever. Isto é porque possuo algumas dioptrias, e escrevo com frequência alguns textos também míopes: desta vez, prestei atenção a outros instantes (por exemplo, tenho quase a certeza que o plano do chefe de Oscar a sair da limousine não aparece em Holy Motors. Uma perspectiva desvendada? Ou, na viagem do carro pelo cemitério que glitcha, Lavant parece estar a dormir. Será C’est Pas Moi aquilo com que sonha?).

E encontrei, então também, como esperava, novas coisas. Algo que não tinha ouvido da primeira vez, e é curiosamente (?) de Bowie que vem. Uma sua promessa: Time Will Crawl. A certo ponto no ensaio de Carax, uma carrinha de protecção civil passa por um bairro: “Atenção! Como acontece frequentemente, o tempo irá passar!”: é a tese. Noutro momento, depois de duas crianças na cama escutarem uma história de embalar sobre como Hitler “acabou com todas as pessoas más do mundo”, contada por uma jovem preceptora de cabelo molhado, o rapaz levanta-se e vai à janela, onde vê aviões a largarem bombas a preto e branco: a antítese. Time will crawl, de David Bowie: a síntese. Esta canção, que Bowie diz ter sido inspirada pela notícia do desastre de Chernobyl, que também é “sobre a ideia de que alguém na própria comunidade possa ser responsável pela destruição do mundo”. O nosso tempo, nosso, o espectador, meu, a escrever isto, e o teu, que estás a ler, vai avançar, mas desengana-te se pensas que irá veloz em frente. O tempo vai rastejar: é o que nos acontece.

Que mais vos posso dizer? É um filme inspirado, para se rever e levar novas pessoas a ver, um spin-off esperançoso de Le Livre d’Image, esperançoso porque ainda não acabámos, ou, como aconselha o próprio filme no ecrã a uns minutos de terminar, “não saiam da sala, a Annette aparece depois dos créditos”. No filme, Jean-Luc Godard é um jovem que telefona para um hotel a pedir uma marcação. Dia 23, véspera da véspera de Natal, passa Pola X no Nimas. Carax diz: “O virtual não é o invisível: é como uma versão preguiçosa do invisível. O virtual é proposto como um mundo que habitamos, mas é um mundo sem experiência” – e é verdade. O verdadeiro invisível deve interessar-nos. E isso está na vida, também não é no cinema que está, que são para ele e devem ser para nós coisas opostas: a cinefilia é também distante da vida.

E então? O impulso vital…

Rafael Fonseca

 

Rafael Fonseca