Críticas a Cão Preto / Black Dog, de Guan Hu

EquipaAbril 15, 2025

Do prolífico realizador chinês Guan Hu (13 filmes em 20 anos de carreira), chega-nos Cão Preto / Black Dog, que foi apresentado no último Leffest, na secção Em Competição. Um drama de redenção, e um insólito road movie, focado na transformação humana de um ex-presidiário que trava amizade com um cão. É o primeiro filme do realizador com estreia comercial em Portugal. Cinófilos assumidos, três tribunos foram ver o filme.

 

Um ex-presidiário e um cão vadio. O primeiro é encarregado de capturar o segundo, como parte de uma operação de limpeza das ruas antes dos Jogos Olímpicos de 2008 em Pequim. A população canina está descontrolada e à solta – e a comunidade internacional não pode ficar com a impressão errada da Mãe China. Um filme sobre duas almas desamparadas que se encontram improvavelmente, numa pequena cidade do interior da China. Guan Hu constrói um épico com uma história intimista, cheia de coração e humor. Parte western moderno (com o seu lobo solitário que tem o árido Deserto de Gobi como pano de fundo) e parte filme mudo (com o seu protagonista praticamente mudo e as suas acrobacias de mota, qual Charlie Chaplin). Destaque ainda para a fotografia de Weizhe Gao, com as mais sublimes panorâmicas da atualidade. Paisagens desoladas de uma escala e beleza impressionantes. Se for um amante de cães, prepare-se para conhecer o seu novo filme preferido.

Pedro Barriga

 

Filmado nos arredores do deserto de Gobi, Black Dog parte das imensas paisagens imponentes e solitárias para focar a sua lente em Lang, um ex-recluso, outrora estrela de rock local, que regressa à sua cidade rural, procurando recomeçar a sua vida. A cidade e os espaços circundantes retratam uma das grandes crises chinesas: a propagação descontrolada de cães vadios. Black Dog procura o retrato íntimo desta realidade através da ligação do protagonista a um destes cães. Lang está inevitavelmente numa fase de renascimento em que as probabilidades parecem estar todas contra si, e ao invés de procurar um caminho evidente para a sua redenção perante a comunidade, o filme de Guan Hu percorre antes a reconstrução interior do seu protagonista, através das pequenas idiossincrasias deste bizarro cenário onde os cães dominam a paisagem. Relembrando por vezes Perfect Days, de Wim Wenders, o silencioso protagonista percorre o cenário, majestosamente filmado em widescreen, num épico que oferece uma inesperada lupa sobre estes animais. A utilização ainda de animais reais (ainda que use CGI em raras cenas distintas), que não se limita a cães, atribui a Black Dog uma certa linguagem que se aproxima do cinema documental, voyeurista e impressionante. Com tantos cães é até difícil entender de que forma é que Guan Hu conseguiu filmar certas cenas. Por outro lado temos o envelhecer da cidade durante a ausência do protagonista. O envelhecimento das famílias, a decadência de uma cidade rural esquecida, prestes a ser demolida, a preparação para os Jogos Olímpicos de Pequim 2008 e a necessidade de ter as ruas limpas (e livres dos seus habitantes caninos). Está tudo lá, neste retrato estóico de uma China esquecida que tem tanto de western como de realista.

David Bernardino

 

É impossível diminuir a importância dos Jogos Olímpicos de 2008 em Pequim enquanto evento maior do século XXI. A China posicionou-se sob a lente de todo o mundo e mostrou uma sociedade em profunda revolução. O país tinha, até ali, levado a cabo um conjunto de reformas e políticas públicas de impulsionamento das grandes cidades do novo século. Desde então, tem-se vindo a desenhar uma sociedade no âmbito de um enorme recomeço. É isso que Black Dog, de Guan Hu, é na sua essência: um filme sobre abandonos e recomeços. A criação de um novo paradigma de desenvolvimento ficou marcada pela morte de uma certa China virada para si mesma. É esta que Lang, um ex-presidiário recém-saído da prisão, representa. Lang lida com o seu regresso a casa perante a animosidade de alguns, a admiração de outros, e sobretudo a indiferença do próprio pai. Nesta sociedade de mudanças, a apanha de cães vadios surge como uma das condições de limpeza das cidades a todos os níveis. Neste contexto, a captura de Lang de um galgo preto surge como pretexto para a criação de uma simples metáfora sobre a nova China. Tal como o cão, Lang é alguém que a sua sociedade colocou de lado e votou às margens de uma comunidade virada para o futuro. Guan Hu faz questão de pontuar este regresso de Lang com uma matriz visual penetrante e profundamente marcada por uma urbanização desoladora sublinhada pela presença avassaladora do deserto de Gobi. As cenas de interação entre Lang e os animais convocam um dinamismo indispensável para Black Dog contrastar a parte da cidade que tem de morrer com este novo país a nascer. Aqui, tal como no trabalho de Jia Zhang-ke (também aqui presente enquanto actor), a presença dos elementos sobrepõe-se à ligeireza dos indivíduos: os grandes anúncios nos megafones da cidade, a inevitabilidade do que aí vem. Guan Hu idealiza uma obra com o mesmo ponto de partida de Jia, mas sem o mesmo apurado olho para o retrato de tempos em mudança. Black Dog torna-se, então, um registo mais virado para a simplicidade da metáfora em torno do seu centro, eficaz a recriar a noção de recomeço de um novo homem, numa nova viagem, numa nova sociedade.

Hugo Dinis