Breve História de uma Família, a primeira longa metragem de Lin Jianjie passou por Portugal no LEFFEST em 2024 e estreou a 22 de Maio nos cinemas nacionais. Rafael Fonseca parte de um encontro com o realizador para analisar a dinâmica de uma família nuclear chinesa, complementada pela visão de futuro nas linhas de Hugo Dinis.
Wei é um rapaz extrovertido com uma paixão pela esgrima. Vem de uma família de classe média e sente-se sufocado por não corresponder às expectativas dos seus pais. Um dia conhece Shuo, o seu total oposto: introvertido, extremamente dedicado aos seus estudos e com uma vida familiar complicada. Quando Wei convida Shuo para ir a sua casa, a sua presença torna-se habitual no seio familiar. Os pais de Wei vêem em Shuo o protótipo do filho ideal, que sempre desejaram.
No final do ano passado cruzei-me com o realizador Jianjie Lin (também conhecido como J.J.), muito cuidado e dono de um inglês perfeito, polido na faculdade de Artes e Cinema em Nova Iorque, no MUDE – Museu do Design, a espreitar com atenção o documentário dedicado ao pintor José Escada. Breve História de uma Família é a sua primeira longa-metragem, que na altura terminava um percurso impressionante, depois de uma estreia absoluta em Sundance e de uma passagem pela secção Panorama do Berlinale, com uma presença connosco no LEFFEST.
No filme, acompanhamos uma família nuclear chinesa, de um filho apenas, rapaz, nascido durante o reinado cultural da política de um só filho que a China manteve de 1979 a 2015. O rapaz, Wei, preguiçoso, fã de videojogos e praticante de esgrima extra-curricular, trava uma amizade invejosa com um colega na escola – começam a falar porque Wei lhe atirou uma bola à cara – e o rapaz, Shuo, rapidamente passa a fazer visitas regulares à casa do primeiro para jogar e estudar.
Shuo, sabemos depois, é maltratado pelo pai víuvo, despertando nos pais de Wei instintos compreensíveis de paternidade e proteção: o jovem parece ser de resto um rapaz muito mais certinho, inteligente e dedicado que o filho biológico deles – ouve Bach aos catorze anos – e os dois pais, também muito carentes, que não tiveram mais que um filho, vêem um novo capítulo das suas vidas surgir feliz com este jovem adolescente por casa: Shuo já quase não passa pelo seu domicílio; já tem quase uma segunda família.
Revelam-se naturalmente, durante e depois, as redes de ciúme e de inadequação aqui armadilhadas, de expectativas e frustrações um pouco por parte de todos os protagonistas. Esta assimilação de um “vírus” estranho, outro filho (o pai de família é biólogo de investigação, um paralelo estético que é um dos mais sublinhados leitmotifs do filme) revela-se muito complicada, e há o risco provável de este corpo, esta unidade familiar reprimida e em complexa estase rejeitar o intruso.
O filme é notável também por nunca resvalar para um registo histriónico, gore, terror, ou outras opções que encontramos no passado em explorações de premissas similares, desde as japonesas (o burlesco) às americanas (o thriller). A longa-metragem de Jianjie Lin mantém sempre um interesse muito sóbrio, cerebral e nervoso num naturalismo e em modelos do comportamento humano facilmente encontrados na mais simples das famílias, com a mais breve das histórias.
Rafael Fonseca
Um drama familiar com a codificação estética de um filme de terror. Lin Jianjie filma uma classe média-alta chinesa no meio de uma assepticidade extrema, enquadrando planos esvidraçados no contexto de uma história de expectativas. A força da lei do filho único motivou um especial impacto numa geração de casais chineses em reflexão pelas escolhas do passado. Mas essa alteração geracional também veio a coincidir com a ascensão global chinesa enquanto potência marcada pelo salto na qualidade de vida. “Mas todos dizem que é na China que está o futuro”, diz Wei, o jovem filho da família aqui centrada. O futuro não é igual para todos, contudo. A casa de família no centro de Breve História representa o conflito entre um casal marcado pelas escolhas e sacrifícios do passado, com todas as expectativas que ali encerram, e um filho simultaneamente bafejado pelo privilégio (um entusiasta de esgrima e um ávido gamer) e pelo peso das esperanças dos pais. Nesse aspecto, a introdução da personagem de Shuo, um jovem criado na ausência da mãe e na violência do pai, surge não tanto como um intruso na relação familiar, mas antes como uma oportunidade de um novo começo para o casal. A alteração das dinâmicas de parentalidade reflecte-se sobretudo no contexto da nova geração: as expectativas acabam por ditar mais do que as condições materiais, com o desenlace destrutivo que sempre acarretam.
Hugo Dinis