Bowling Saturne, penúltimo filme de Patricia Mazuy, de 2022, estreou finalmente nas salas de cinema portuguesas. Este thriller dramático centrado na relação entre dois irmãos propõe, nas palavras da cineasta, “explorar a ideia de um filme negro contemporâneo, baseado em relações de dominação, ou seja, filmar uma tragédia”. De um naturalismo cru, sem cedências, promete ser um desafio para corações mais sensíveis. Três tribunos já assistiram ao filme e deixam-nos as suas críticas.
Sinopse: Após a morte do seu pai, Guillaume, comissário da polícia, herda o bowling da família. Decide entregá-lo a Quentin, seu meio-irmão, renegado. O comportamento impulsivo de Quentin e a sua improvável gestão da pista de bowling impedem Guillaume de se dedicar totalmente à investigação de uma série de assassinatos de jovens mulheres que assola a cidade. (Unifrance)
“Somebody got murdered / And it left me with a touch”
– The Clash
Abrimos com um tracking shot, um homem atravessa um viaduto e caminha, outro abranda o carro junto dele. Algum tipo de prospecção? Mas o homem do carro informa-o da data de um funeral, o homem que caminha ignora-o. Como nos ensinam nas aulas de guionismo, e sem o amadorismo de muitas destas, acabámos de descobrir várias coisas sobre estas personagens. Já o dissemos anteriormente – Bowling Saturne é um filme nas mãos de uma cineasta muito inteligente, um filme de grande economia, quadriculado como uma folha de arquitecto, químico como o noir urbano que é com sucesso. A morte do pai caçador, anterior à acção filmada (o inciting incident é invisível, veremos apenas as réplicas), deixa um salão de bowling para dois filhos, um apartamento por cima e um cão por baixo – o progenitor animado, em transmigração da alma – se o animal pudesse piscar o olho, piscava.
Armand, um indigente, filho bastardo e perturbado, recebe o salão rejeitado pelo irmão legítimo (detective, o “bom”) e descobre algures no espaço, e no apartamento apetrechado de peles de cobra e javali, facas e máscaras tribais, uma nova configuração, que o fará acelerar num grito, em direcção ao seu destino. Há um casaco de pele que nunca mais despe, e a primeira coisa que faz enquanto patrão é baixar o preço das cervejas e refrigerantes e subir o preço das bebidas brancas. Os clientes do costume, caçadores amigos do pai, terão de sair. As mulheres, de quem não consegue afecto, terão de entrar.
A cena de sexo que termina no primeiro homicídio, com Gloria, rapariga que aparece no salão a “viver a vida, como em Dostoiévski”, causou algumas saídas da sala, como talvez aconteça em outras sessões. É, tenhamos presente, uma cena tudo menos arbitrária, e tudo menos gratuita. Vértice crucial do filme, é aqui que Bowling Saturne coloca tudo na mesa – está em pleno jogo a tragédia.
Guillaume, o irmão, dá por si a investigar (ainda não o sabe) os crimes que Armand comete ao longo do tempo. A certo ponto, quase consegue impedir o suicídio de uma mulher que, depois de um encontro com Armand no bowling, tem sido incessantemente acossada por ele. Na segunda metade do filme, mal vemos o assassino, o monstro foi apresentado, os crimes dão-se fora de campo, não é preciso ver mais nada depois do primeiro: Mazuy faz também uma escolha precisa com isto. É a tragédia de Guillaume que acompanhamos, o irmão a perseguir o criminoso fraterno, assombrado tal como ele pela violência de um pai que o “abandonou no século XXI”, rodeado por aquilo que já foi determinado, a raiz na campa paterna, o irmão que tem de ser abatido. Xuan, a activista de direitos dos animais com que começa uma relação, é o complemento contístico, Melpómene de fábula, testemunha da bestialidade dos irmãos. No fim, os caçadores reformados, amigos de vida do pai, almoçam, tocam memórias antigas e – Luís Miguel Oliveira diz isto muito bem – “projectam o filme com as suas façanhas africanas, e são como espectros reanimados pela recordação do massacre dos inocentes.” Armand sobe em equilíbrio ao parapeito de uma janela, como uma pantera. Do filme A Caça (1964) de Manoel de Oliveira, também evocado por LMO, lembro-me com uma exactidão traumática daquilo que é suplicado incessantemente enquanto um homem é engolido pelo solo, e que é “A mão! A mão! A mão! A mão!”
Rafael Fonseca
Saturn Bowling cresce na dualidade mas vive sobretudo de uma crueza violenta na examinação da masculinidade moderna. Imagina um primeiro acto extraordinariamente transparente na sua desumanidade e depois acaba por guinar na direcção de um registo criminal ao estilo de procedimental policial. A violência sobre os mais fracos é, de resto, o mote para o olhar lançado ao homem moderno, ora complacente com a caça aos animais indefesos, ora expiando rancores sobre a forma de violência de género. A metade de Guillaume, o agente a correr atrás de uma série de assassinatos, poderá ler-se como uma espécie de recado “not all men“, em particular porque Guillaume é sobretudo um homem acossado por tudo o que o rodeia: desde o meio-irmão que vê nele a vida familiar que não teve, ao seu contexto profissional que o pressiona e marginaliza perante a pressão da descoberta de culpados, passando em última análise pelo seu interesse amoroso na derradeira cena. Esta ideia do homem à margem é levada ao extremo por Arnaud, o filho bastardo, no primeiro acto: a violência contínua e crua surge-nos como inteiramente alienante.
Hugo Dinis
Se o filme assume uma crueza estética que lhe advém do digital, insiste, por outro lado, num realismo atávico que abate qualquer potencial abstracto. Bowling Saturne vive de um mimetismo da realidade que nos relembra frequentemente a televisão, com uma câmara que se desloca para mostrar as acções das personagens, e personagens que se deslocam como se fossem “mesmo mesmo” reais. É uma pena, sobretudo para quem, sem ter visto outros filmes da realizadora, sempre imaginou Patricia Mazuy como provável nova amiga. Mas apesar do intento dramático, que se apoia, com evidencia, em noções mitológicas clássicas – Édipo, Saturno, a caça e o sexo, a carne e a terra – mais facilmente identificamos o filme enquanto exercício canónico de série policial, como se de um C.S.I. Caen se tratasse. E se esse seu dito “realismo” não seria, por si só, um verdadeiro problema, falta aqui um rigor formal, um intento cinematográfico, que possa transportar o filme para além do seu redutor discurso narrativo. Mais, é por efeito desse “realismo” que (tanto quanto a debilidade dos seus actores) as malhas graves da trama são expostas – com uma história que se esforça, afinal, muito pouco para fazer o sentido que o filme encontra nos seus prosaicos cenários contemporâneos. É simplesmente insuportável que Guillaume (Worthalter) nos apareça por duas vezes a grignoter de um pacote de bolachas do supermercado, como se de “cinema” se tratasse. Como é inaceitável o percurso narrativo demasiadamente injustificado de Armand (Reggiani). E tudo isto, claro, sem mencionar uma antológica cena de brutalidade glorificada que nos é cedo servida sem o mais pálido contexto. Histórias de violência por registo algo incerto, um filme composto de peças narrativas e simbólicas (quiçá interessantes) que, não resultando num todo coerente, servem sobretudo para construir um discurso (sim, “meat is murder“) que nunca é fundamentalmente cinematográfico. Se Mazuy sempre se destacou pela sua independência relativamente ao “cinema francês” a verdade é que um pouco mais de Bresson (L’Argent) ou um pouco mais de Pialat (Police), faria aqui uma enorme diferença.
Miguel Allen