Aos 12 anos, Bailey vive com o irmão, Hunter, e o pai, Bug, que os cria sozinho num bairro de precário a norte de Kent. Bug não tem muito tempo para eles e Bailey, que se aproxima da puberdade, procura atenção e aventura noutro lugar… Apresentado mundialmente no Festival de Cannes… de 2024, e após uma passagem pelo Leffest em novembro do ano passado, estreia, com grande atraso, Bird, o mais recente filme de Andrea Arnold. Dois críticos da Tribuna foram vê-lo.
Um pássaro voa livre nas alturas, observado por uma jovem rapariga que o observa do outro lado de uma vedação, ansiando pela sua própria liberdade. A imagem que abre a mais recente longa-metragem de Andrea Arnold apresenta-nos uma metáfora algo óbvia e cansada, entrada em falso de um filme que, durante o seu primeiro movimento, se apresenta como um quase-retrocesso, a versão requentada de uma dinâmica que a cineasta já explorara em Aquário, filme que é já um clássico do cinema moderno.
Esta proposta inicial (e inicialmente desinteressante) cedo dá lugar a outra, no entanto, quando Bird revela a sua verdadeira natureza como um filme que alia o realismo social, comum ao cinema de Arnold, a uma sensibilidade do campo do fantástico, que confere ao filme uma identidade muito particular. Essa veia de realismo mágico entra de rompante pela narrativa, sobre uma jovem pré-adolescente (notável estreia de Nykiya Adams) a crescer em condições precárias num bairro de lata inglês, com a aparição de Franz Rogowski, que continua a demonstrar ser um dos atores mais magnéticos e idiossincráticos do cinema europeu contemporâneo.
É na dinâmica entre Rogowski e Adams que se joga o peso narrativo e metafórico do filme. Uma metáfora que, quem sabe, podia ter beneficiado de mais tempo de cozedura — “Bird” representa ao mesmo tempo uma emancipação, um coming-of-age, um despertar sexual, um desejo de ser superior às suas condições sociais e económicas (entre outras coisas) —, mas que fazem deste um engenho bastante distinto daquilo da restante obra de Arnold.
A isto alia-se também alguma ambição formal, na medida em que o filme joga com o seu próprio aspecto — por diversas vezes o quadro surge na vertical, com imagens que se conclui virem do telemóvel de Bailey (Adams), filmadas por si, ou talvez dos seus sonhos —, uma admirável exploração das formas de ver e da nossa forma de produzir imagens. Essas imagens de smartphone pontuam os créditos finais, quando vemos diversos membros do elenco e equipa técnica em modo blooper, a dançarem e a gesticularem para a câmara enquanto os seus nomes aparecem listados, por ordem alfabética e sem qualquer função associada (incluindo o da realizadora). Aqui, Arnold sugere-nos aquilo que o filme já deixara mais ou menos explícito na sua narrativa: tal como as pessoas, o cinema é fruto das comunidades que o criam.
André Filipe Antunes
Da desinovação e desimaginação. Bird representa mais um ensaio do realismo social da câmara handheld de Andrea Arnold, depois da incursão no documentário de consciência ambiental Cow em 2021, inspirado na vida familiar de uma pré-adolescente na Inglaterra rural. O formato é, desde logo, expectável e familiar, colocando-nos no centro de uma comunidade pobre que vive de biscate em biscate e que sente na pele o impacto da desigualdade. Barry Keoghan é o pai jovem de Bailey (Nykiya Adams), à espreita do seu novo casamento, que irá motivar uma clivagem entre os dois face à presença da sua noiva e filha pequena, mas é a própria Bailey que Arnold centra, à semelhança de outras personagens femininas em busca de independência e identidade como no caso de Fish Tank ou American Honey. Bailey vê-se tida descartável quer pelo pai, quer pela mãe, que se vê por seu turno envolvida numa relação abusiva com outro homem, mas também pelo seu irmão (pouco) mais velho, também ele na perspectiva de vir a ser pai prematuramente. Arnold resolve colocar todas estas relações no prisma de um relativo intruso na malha social da pequena localidade de Bailey: Bird (Franz Rogowski) é uma entidade que acaba por vir confundir-se com o espaço físico que ambos habitam, um homem de palavras simples e uma candura vincada, alguém que chega à vila enquanto símbolo de uma escapatória necessária para Bailey. Contudo, Bird não representa apenas escapismo, mas também uma renovação do sentimento de pertença para Bailey. Enquanto que as paredes se fecham quer em casa da mãe, quer na do pai, Bailey vê em Bird uma oportunidade de companhia: alguém que a defenda no isolamento a que se vê votada. Mas é aqui que Arnold também acaba por cair nos clichés de um género de construção já estafado. Bird serve então para dar a Arnold um veículo fácil quer para solucionar a solidão de Bailey e construir um final optimista, quer para passar um pano sobre a miséria social que estas vidas encerram. A solução do realismo mágico passa aqui por manifestações particularmente óbvias para a familiaridade da narrativa (as repetidas referências visuais e sonoras de diferentes aves, a figura de Rogowski pendurada no telhado dos prédios habitacionais no bairro de Bailey, a ideia de Bird enquanto espécie de anjo da guarda), e o resultado acaba por ser mais bem intencionado que propriamente memorável.
Hugo Dinis