Críticas a Banzo, de Margarida Cardoso

EquipaFevereiro 3, 2025

Uma “nostalgia mortal ou patológica dos escravos africanos levados para longe da sua terra” (in Priberam), banzo (de mbanza, “aldeia” em quimbundo), é um sinónimo da “depressão” provocada pela perda de liberdade da população negra nas colónias, durante a época da escravatura – sendo em si, também, um sentimento de resistência aos maus-tratos e ao trabalho forçado. O novo filme de Margarida Cardoso segue um médico (Carloto Cotta) que, em São Tomé e Príncipe, no ano de 1907, deve curar um grupo de servos “infectados” pela misteriosa doença. Rita Cadima de Oliveira e André Filipe Antunes foram ver o filme e deixam-nos aqui as suas críticas.

 

Margarida Cardoso viaja para a Ilha do Príncipe, em 1907, atribuindo a Afonso (Carloto Cotta), um médico da metrópole, a função de curar os escravos de uma plantação de cacau. A infecção chama-se Banzo, conhecida pela nostalgia dos escravos que se vão suicidando, no temor da fome e da despersonalização identitária e grupal. Estes homens que perdem a esperança, foram confinados a um país que lhes é estranho, cuja distância da família, só lhes permite ver na morte a ilusão da paz. É então que se exige uma cura daquilo que lhes afecta a alma. Por mais estudos científicos que Afonso tenha e mesmo após uma experiência brutal no Congo Belga, este médico percebe que não há remédios, nem medicamentos capazes de curar a tristeza. Como pode então um filme triste ser tão belo? Sem nos abrigarmos em oportunismos políticos ou discursos colonialistas, acreditando que o seu todo já é uma crítica subtil, nunca caótica, Margarida Cardoso consegue sobretudo filmar fantasmas, eles que são a névoa deambulante que vai bailando na densa floresta de São Tomé. É digno o trabalho da fotografia que capta graciosamente a assombração que se funde com a neblina da montanha. Irrepreensível e certeira é a fórmula que conjuga  a tristeza da natureza e dos espaços interiores com o sentimento de não pertença àquele lugar, numa dicotomia acérrima e conflituosa. E é na face de todas as personagens e nunca nos seus silêncios que essa crítica mais se exprime O trabalho sonoro deste filme é uma amálgama expressiva do início ao fim, tudo pesa. Pesa a chuva a cair, as folhas a serem pisadas, o choro das crianças, a fome dos escravos e o medo. Mas é especialmente o barulho do medo que não cessa. A transladação das almas e a sensação de se querer partir quando não se sabe estar. Partir, em Banzo, não é sair. É morrer. E morrer significa entregar a alma ao descanso, independentemente da última morada do corpo. No fim, não importa onde se repousa fisicamente, importa até onde a alma viaja.

Rita Cadima de Oliveira

 

Na sua terceira longa-metragem de ficção, Margarida Cardoso propõe um exercício paradoxal: tentar fotografar o invisível. Levando o espectador para as plantações de cacau de São Tomé no início do século XX, a realizadora de A Costa dos Murmúrios e Yvone Kane move-se nos espaços intermédios à procura do mal latente, mesmo fora de campo e do olhar de Afonso (Carloto Cotta), médico que chega ao território com a missão de “curar” os trabalhadores negros que sucumbem a uma misteriosa “doença da melancolia”, perante a indiferença dos colonos portugueses. Banzo assume o simbolismo desta viagem: refletindo sobre os limites das representações europeias de África, daquilo que retratamos e do que deliberadamente deixamos fora da imagem, a cineasta procura provocar a reflexão do espectador sobre o que ainda não assumimos a nós próprios relativamente à nossa relação com o passado colonial português e os nossos próprios “pontos cegos”.

É uma proposta de ambição admirável, ainda que o resultado fique um tanto aquém do objetivo. O esforço de mise-en-scène é irrepreensível, e o mesmo se pode dizer do trabalho de imagem, com o diretor de fotografia Leandro Ferrão (Um Caroço de Abacate) a evocar algo de um terror oculto na neblina daquelas terras assombradas. O filme de Margarida Cardoso acaba, contudo, por pecar por alguma indefinição narrativa, sobretudo no que toca à construção da personagem de Carloto Cotta, o Marlow de serviço neste coração das trevas, cuja falta de agência narrativa — um risco calculado, assumido pela própria cineasta — acaba por não resultar por inteiro. Essa passividade do protagonista, que seguimos durante as duas horas de duração da longa, acaba por colorir toda a experiência do filme, deixa-nos à distância das imagens e do sofrimento que contêm (e, na maioria dos casos, insinuam). Perto do final, quando Alphone (Hoji Fortuna), fotógrafo negro, binómio de Afonso, diz que “o mal não se deixa fotografar facilmente”, concordamos com ele. Pena que Banzo, apesar das suas várias qualidades, não consiga mais do que um retrato desfocado.

André Filipe Antunes