Críticas a Ballerina (do Universo de John Wick), de Len Wiseman

EquipaJunho 12, 2025

Perante o grande sucesso de bilheteira que tem sido John Wick, e o seu significado no cinema de acção contemporâneo, parecia uma inevitabilidade que, mais cedo ou mais tarde, a série se expandisse no grande écrã (já aconteceu no pequeno, com a série de televisão The Continental). Ballerina é esse filme, um spin-off protagonizado por Ana de Armas que relega Keanu Reeves e o seu John Wick ao papel secundário. O filme funciona, mas David Bernardino e Hugo Dinis parecem ter chegado à mesma conclusão: para um filme ser filme, não basta apenas existir.

 

Ao existir, Ballerina é um filme inevitavelmente condenado à sua condição: ser um spin-off de algo maior. John Wick, o franchise, é um dos grandes símbolos do cinema americano dos últimos 10 anos. Uma pseudo reinvenção do género de acção por quem o conhece por dentro: Chad Stahelski, stunt double virado realizador, que soube também reinventar um Keanu Reeves relegado à indiferença de momentos de culto do seu passado filmográfico. Ballerina está para John Wick como Rogue One esteve para Star Wars. É, sem dúvida, um filme de acção superior. Coreografias trabalhadas, narrativa relevante, e sobretudo uma realização educada e competente, ainda que procure mimetizar o que Chad Stahelski fez nos “filmes principais”. Len Wiseman, o homem por detrás de Ballerina, não é necessariamente um realizador tarefeiro. Além de ter realizado Underworld e o remake de Total Recall, tornou-se nome sonante num certo nicho, depois de Live Free or Die Hard, o quarto capítulo da história de John McClane (2007) – filme que talvez tenha inserido a cibersegurança (hoje evoluída para a inteligência artificial de Mission: Impossible – The Final Reckoning) como vilão sem rosto no cinema comercial. Seria por isso expectável que Ballerina não fosse um filme obtuso. É, aliás, extremamente competente. Mas estando inserido num franchise da magnitude de John Wick, ser extremamente competente não basta. Ana de Armas nunca consegue ter carisma suficiente, ou antes, a implacabilidade (?) suficiente do Baba Yaga John Wick. Falta-lhe a sobriedade, falta-lhe o mistério, falta-lhe a mestria quase científica com que Chad Stahelski construiu este universo paralelo, que existe sob uma Nova Iorque de néons e balas. À medida que a acção se desenrola o olho fica cheio, o sorriso existe, mas será que isso importa? A certa altura, perto do final, com lança chamas em punho, damo-nos conta de algo que aparentemente pode elevar Ballerina a algo mais do que um produto. O exagero e surrealismo da cena, mesmo para o over the top que John Wick é, quase que dão a volta ao texto e transformam o filme numa espécie de série Z desavergonhado, que por momentos se arrisca a espantar pela positiva o espectador mais céptico. Acaba sempre por não ser suficiente, confirmando-se a profecia: Ballerina não é mesmo mais do que um produto “do Universo John Wick”, balizando aí a sua relevância. Sim, Keanu Reeves aparece por momentos, cumprindo o fan service comme il faut. Tudo é óptimo, tal como Darth Vader no final de Rogue One. Sinceramente, é até bem melhor que isso. Mas novamente a profecia: não é suficiente.

David Bernardino

 

Algures nos últimos vinte anos, Hollywood deixou de fazer filmes de acção sobre qualquer outro tema que não seja vingança. O género não é propriamente novo, nem foi agora inventado: desde o cinema independente americano de diferentes tipos de exploitation dos anos 70 até ao neo-tarantinismo dos anos 2000, a revanche tem sido um mecanismo facilitador de enredo que dispensa grande construção de contexto em Hollywood. Mais recentemente, John Wick foi sempre bandeira de fundo. Wick não representa particularmente nada, a não ser o niilismo da pancada. É um serial killer que regressa ao activo depois do assassinato do cão, um profissional da morte cujos valores são simplesmente aqueles que conduzem o seu métier. Nesse aspecto, não surpreende que John Wick acompanhe o niilismo dos seus tempos. O estilo impassível de Keanu Reeves, com o seu fato preto, mais próximo do de um banqueiro ou empregado de mesa em restaurante de fusão, e a dicção seca de um burocrata em fim de turno, sempre escondeu uma ausência de personagem para lá da perda do seu malogrado cão. Nesse sentido, Ballerina é um filme que coloca a questão: então e se houvesse dois destes?

A mera existência de Ballerina parece estar suportada pelo aparecimento de Ana de Armas em No Time to Die, o derradeiro filme da saga James Bond. Ao contrário de Reeves, Ana de Armas confere uma postura muito menos casual ao empreendimento da revanche: a sua personagem é alimentada pelo fôlego da vingança, pela morte dos pais enquanto jovem, mas enquanto Reeves despacha os antagonistas com a naturalidade e a precisão de um trabalhador fabril, a Armas não lhe é conferida qualquer personalidade. E aqui começam os problemas para a Ballerina de Len Wiseman. Este é um filme com um aspecto “costurado”, de pontas que se soltam e não se reencontram, de intenções que aparecem e desaparecem. A isso não será alheia não só a relativa mediocridade de Wiseman enquanto realizador, como também a alegada decisão de fazer regressar Chad Stahelski, o mentor da saga John Wick, para diversas novas filmagens. Não é difícil de as reconhecer no ecrã de Ballerina, na realidade, tal é a ausência de identidade na mão de Wiseman, em diversos níveis. Ballerina conta com diversas sequências de acção competentemente executadas que formam um vincado contraste com as composições inertes de grande parte das cenas diegéticas que compõem o filme, a tal ponto que seríamos desculpados por pensar que não estariam fora de lugar no que de melhor a série John Wick produziu.

É difícil habitar o mundo John Wick quando se foge à extrema estilização do seu ecossistema. Wick é vingança, é certo, mas também é um código de honra entre assassinos, um hotel que serve de refúgio à matança, ou uma identidade visual que vê a negrura do seu próprio niilismo. Ballerina ostensivamente pede grande parte do mundo Wick emprestado e, quando o faz, acaba por ganhar com a cópia. Após o assassinato dos pais, Armas é conduzida para uma das escolas de matança que populam este universo e, no decurso do seu tirocínio, é inevitavelmente levada ao confronto com os culpados do pecado original. Ainda que a personagem de Armas seja marcada por estes traços familiares, ela não merece a mesma construção de personalidade que o Wick de Reeves encarnou assim que apareceu pela primeira vez no ecrã. É difícil discernir o efeito de muitos dos elementos que ajudam a definir a sua personagem: não há uma verdadeira sensação propulsora de vingança familiar, nem sequer uma reacção visceral à descoberta dos responsáveis pela morte dos pais. A Ballerina de Ana de Armas simplesmente existe.

Hugo Dinis