Vencedor da Palma de Ouro do Festival de Cannes deste ano, Anora, de Sean Baker, marca o regresso do cineasta americano às franjas da sociedade – neste caso através de um encontro improvável entre o topo e a base da pirâmide. Depois de estreia exclusiva no Tribeca Festival Lisboa, está agora com distribuição comercial em todo o país. Amplamente aclamado por crítica e público, promete dar muito que falar na award season. Aqui ficam as críticas dos tribunos que já o viram.
Sinopse : Uma jovem trabalhadora do sexo, em Brooklyn, tem a oportunidade de viver a sua história de Cinderela ao conhecer e casar impulsivamente com o filho de um oligarca. A notícia chega à Rússia, e o conto de fadas é ameaçado quando os pais do noivo partem para Nova Iorque para anular o casamento.
O que funciona melhor em Anora é a forma como Sean Baker mistura géneros, passando do que inicialmente parece ser um drama sombrio sobre a realidade das trabalhadoras do sexo para uma comédia slapstick pura dos anos 90. Anora é fascinante na forma como subverte as expectativas da sua própria linguagem, caminhando numa linha muito ténue onde oligarcas russos, mafiosos e acompanhantes/dançarinas parecem coexistir naturalmente. É também estranhamente realista dentro do seu cartoon, dando personalidades casuais a estas personagens que, ao longo dos anos, foram tão estereotipadas que achamos já as conhecer, apenas para descobrir um lado totalmente diferente destes arquétipos. No entanto, o filme arrasta-se e luta para encontrar um ritmo adequado, esbatendo lentamente o artifício da sua premissa surreal: a união entre uma acompanhante e o filho de 21 anos de oligarcas russos. A cena final também não resulta tão bem e reduz-se a uma conclusão moral, ou humanista vá, que não encaixa naquilo que o filme aparenta perseguir, após termos visto uma comédia ao estilo Monty Python, Leslie Nielsen e Irmãos Coen.
David Bernardino
Um exercício menorizante da parte de um dos cineastas americanos mais promissores em actividade. Claro que lhe vale a Palma de Ouro. Em mais uma exploração da relação de forças no mundo do trabalho sexual, para traduzir à letra a expressão americana, Sean Baker conta a história de Anora, contratada para ser a namorada pessoal e mais tarde mulher do filho herdeiro de uma família russa endinheirada. É mais uma vez evidente que, para Baker, a importância da contextualização é primordial para o setup: uma larga fatia da primeira parte de Anora é dedicada a simples interacções, encontros casuais e introdução de personagens fugidias e transitórias. Muito embora este sirva para estabelecer a competência de Mikey Madison no papel titular, Anora está largamente apenas a comprar tempo até ao descambar dos acontecimentos. A família russa não aprova do casamento e Baker cria uma opereta caótica, feita de desencontros e mal-entendidos, slapstick e farsa social, em torno do desejo familiar de ver a união anulada. É neste tipo de construção situacional, pontuada por composições, planos e cenas muitas vezes mais grandiosas do que deviam ser, que Baker consegue elevar o seu cinema. Contudo, é a partir daqui que Anora se constitui sobretudo como um tiro ao lado. Para trás ficaram os planos ricos de significado e conteúdo de Red Rocket que suportavam a vida periclitante da personagem central, a favor de uma vacuidade visual e narrativa em Anora. Sobretudo nociva é a construção de Anora enquanto personagem: enquanto em Tangerine ou Red Rocket tínhamos carácter cuidadosamente formado para sustentar relações laterais, aqui temos uma Mikey Madison unidimensional, permanentemente crente na bondade e na inocência do seu marido em fuga, permanentemente desprovida de qualquer sentido crítico. Pela primeira vez, Sean Baker parece sentir genuína repulsa pelo meio do trabalho sexual. O resultado final é um conjunto de relações laterais que simplesmente não resulta e, em última análise, no caso da derradeira cena de Anora, tenta empurrar o espectador para um simulacro de significado que está, na verdade, ausente. Anora funciona, pois, enquanto consegue vestir a roupagem de comédia de peripécia absurdista. Tudo o mais não passa de miragem.
Hugo Dinis
Em Anora vemos Sean Baker abandonar a periferia, fugindo dos subúrbios e distúrbios para um centro urbano não menos caótico. É numa Nova Iorque nocturna e pouco glamorosa que a cinematografia se vai disfarçando de sexo, drogas mas pouco rock’n’roll. Numa batida constante, somos apresentados a Ani, uma jovem trabalhadora do sexo de Brooklyn, que aceita a sua independência como uma cruel sina. Apesar da exímia e irrepreensível singularidade da interpretação majestosa de Mikey Madison, Baker pretende mais uma vez, por meio da representatividade, contar-nos de forma algo tosca e ruidosa a vida de milhares de jovens que acabam por nunca se cruzar com o tão apetecível American Dream. Compreende-se quem tenha assumido este filme como um moderno Pretty Woman ou até mesmo uma nova e refinada Cinderella, ambos formatados a uma geração arruinada pelo desemprego, precariedade e pela inflação, onde não faltam ingredientes mafiosos, oligarcas russos, álcool e drogas. Ao tentar sair da sua zona de conforto, Sean Baker acaba por nela se afundar, com mais uma pertinente crítica social mas que tecnicamente se executa de uma forma atabalhoada, deveras ruidosa, perdendo-se a essência moral e a reflexão que dela devia brotar. O alarido em excesso galga para uma comédia algo grotesca e perversa, onde as excessivas gargalhadas dos espectadores perturbam qualquer um que nisto não reconheça comédia ou sarcasmo mas sim um penoso assunto social e merecedor de maior consideração.
Rita Cadima de Oliveira