Críticas a A Semente do Figo Sagrado, de Mohammad Rasoulof

EquipaJaneiro 30, 2025

Filmado secretamente em Teerão, A Semente do Figo Sagrado, 10ª longa-metragem de Mohammad Rasoulof, resultou na condenação do realizador a oito anos de prisão e sua subsequente fuga do Irão. Vencedor do Prémio Especial do Júri em Cannes e Grande Prémio NOS no Leffest 2024, o filme combina ficção com imagens reais dos protestos políticos de 2022-2023 – nomeadamente contra a morte de Mahsa Amini – que foram violentamente reprimidos pelas autoridades iranianas. Recordamos a crítica ao filme por três tribunos.

Iman, um funcionário público, advogado e oficial de justiça, é promovido ao Tribunal Revolucionário de Teerão. No novo cargo, é-lhe atribuída uma arma e Iman começa a ser pressionado pelos seus superiores a assinar sentenças de morte sem direito a investigação ou julgamento. Um dia, a arma desaparece de sua casa. A afronta enfurece Iman, que passa a suspeitar da esposa e das duas filhas adolescentes.

 

Iman é patriarca, pai, marido e juiz de instrução no Tribunal Revolucionário de Teerão. Das portas para dentro, o desfalque familiar que impõe à sua mulher e filhas, pela constante ausência e extrema devoção ao trabalho,  resulta em quebras de confiança e numa crescente rejeição e indiferença para com o seu papel de chefe família. Ao conduzir desta forma a sua narrativa, Rasoulof cria dois lados distintos, as personagens boas e as más, conseguindo que qualquer espectador se identifique e conecte com um dos lados da história. Mas mais do que isso, constrói um formato de dupla obliteração para englobar temáticas importantes da sociedade iraniana: a dualidade entre a implosão da esfera privada e a explosão da esfera pública. O que somos em casa e quem somos na rua é assumidamente distinto, mas está intimamente ligado num Irão conservador e retrógrado. O realizador capta a ficção realisticamente, sendo pleno na transmissão de uma factualidade contemporânea que traz um elefante para a sala e torna a atmosfera desconfortável e perturbante. Passo a passo, as normas sociais e as regras da vida familiar vão-se alterando e endurecendo, a tensão e a desconfiança aumentam, originando maiores impulsos de violência quer dentro dos lares, quer nas ruas iranianas. À medida que se intensificam gradualmente os protestos políticos nacionais, onde o movimento revolucionário da mulher no Irão reclama reformas feministas, exigências e atenções, Rasoulof agrava drasticamente as acções de Iman, carregando mais e mais no ritmo e tensão narrativas. A Semente do Figo Sagrado consegue ser várias coisas, mas não de forma especialmente equilibrada. É sobretudo um drama familiar dissidente, vertiginoso e extremamente complexo, ainda que a narrativa furiosa, aliada a um ritmo tão intenso, acabe por transbordar, por vezes, para um melodrama desajeitado, barulhento e  algo telenovelesco, com laivos de thriller e cinema documental. Uma amálgama que mina o seu tom, sobretudo quando se faz valer de algumas escolhas duvidosas de guião para representar um movimento sociopolítico revolucionário que não deveria ser reduzido a uma quezília familiar condimentada com surtos psicóticos e paranoicos. No fim, resta-nos uma história algo desajeitada, com uma encenação medíocre e uma alegoria pouco subtil na qual o sucesso e progressão da carreira de Iman são proporcionais à deterioração da sua saúde mental.

Rita Cadima de Oliveira

 

Sendo o cinema uma forma de arte, talvez não faça muito sentido a existência do conceito de filmes “necessários”. Contudo, para aqueles que acreditam em filmes “necessários”, A Semente do Figo Sagrado provavelmente será um desses. A tentativa de revolução no Irão iniciada em Setembro 2022, apelidada de revolta do hijab (originada pela morte de uma mulher que se recusou a usar o hijab) foi, talvez, o momento em que o Irão esteve mais próximo de derrubar o regime teocrático islâmico, fundamentalista e extremista que domina o país desde 1979. Mohammad Rasoulof captura audaciosamente esses tempos recentes no coração de uma família onde gerações, géneros, crenças e valores colidem. Este drama com múltiplas camadas desenvolve-se com coragem e intensidade (rodado em segredo, o realizador fugiu do Irão depois de ser condenado à prisão), sendo filmado principalmente em interiores até ao terceiro ato, que encadeia na ficção vários vídeos reais gravados por manifestantes, representando assim a realidade desses tempos conturbados, que ainda se mantêm, mas em menor escala, devido à violenta repressão governamental. No terceiro ato, a estética do filme muda, transformando-se quase num filme de género que invoca The Shining, o que pode parecer estranho em alguns momentos, mas que surpreendentemente funciona. O pai cúmplice do regime, a mãe temente a Deus, as filhas revoltadas, as redes sociais, as más companhias, os segredos, as mentiras… Que abordagem magistral.

David Bernardino

 

A nossa apreciação do filme será inevitavelmente marcada pelo “gesto político” que constitui a sua própria existência. No entanto, o valor deste No Home Movie assenta sobretudo no desenho que Rasoulof traça de um contexto político nacional (iraniano) a partir de uma célula unifamiliar fechada. As três mulheres trancadas naquele apartamento, o pai ausente num trabalho “secreto” para o regime, do qual nos chegam ecos vagos a cada noite, e um mundo em luta que entra pela casa, filtrado pelo grande ecrã da televisão, ou potenciado pelas pequenas janelas das redes sociais e pelos sons de revolta nas ruas. Existe aqui um paralelismo evidente entre os espaços mudos do apartamento, filmados em planos-sequência labirínticos, e um regime que não oferece liberdade ou uma saída. Mas será através da relação das duas filhas com os pais, e sobretudo na progressão narrativa do pai (uma “derrocada” anunciada pelo revólver, cujas balas se assemelham a sementes), que o filme torna mais tangível o contexto de medo e paranóia no qual um regime totalitarista mergulha a sua população para poder sobreviver e prosperar. Teremos talvez de perdoar a Rasoulof alguns desvios de intento mais “cinematográfico” – o duche de Iman, o corte de cabelo, o plano demorado sobre o rosto desfigurado de Sadaf – num filme muito mais forte quando mais seco e despido. Mas aquele surpreendente desenlace, insano e agressivo, será a necessária catarse de uma trama que parece sempre querer chegar a outros espaços. O regresso a uma origem hoje morta pelo dito aperto dos ramos de uma figueira sagrada. 

Miguel Allen