Regresso a uma Inglaterra em quarentena por causa do vírus da «raiva», que se espalhara pela Grã-Bretanha a partir de um pequeno laboratório de experiências com símios, em Oxford. Vinte e três anos depois de 28 Days Later chega-nos 28 Years Later. Horror pós-apocalíptico, um exercício de género pós-Covid e pós-Brexit de um Danny Boyle oscarizado e de um Alex Garland hoje amplamente reconhecido. David Bernardino e Hugo Dinis partilham a sua crítica ao filme.
Em 2002, ao realizar 28 Days Later (com argumento de Alex Garland, tal como este 28 Years Later), Danny Boyle estava provavelmente a desbravar o caminho de um certo subgénero britânico de terror anarquista. Uma espécie de Trainspottingzação do cinema de zombies: hiper violento, estilizado, indie, focado em igual medida nas personagens e nas sequências de acção e horror. Podemos colocar de lado 28 Weeks Later, um exercício bem conseguido vindo de outras mãos, para chegar 23 anos depois a este 28 Years Later, novamente pela lente de Boyle e a caneta de Garland. O novo filme, primeiro de uma trilogia, esteve em produção anos a fio, à procura de uma direcção que desse sentido à sua existência além comércio. O resultado é, no mínimo, improvável.
Provavelmente, muitos esperavam de 28 Years Later uma sequela derivativa, uma nova história de sobrevivência com sequências intensas de acção e horror, mas Danny Boyle, aqui em versão enfant terrible punk, hoje realizador de renome e aparente independência total (tal como Garland, no argumento), troca as voltas com um coming of age bipartido, pelos olhos do jovem Spike (Alfie Williams). Numa primeira metade observamos o ascendente masculino do pai (Aaron Taylor-Johnson) sobre Spike, numa espécie de ritual de iniciação que pretende fazer do filho um “homem”. A violência e vertigem que caracterizam o filme original estão de volta, bem como a moral, a religião, mas sobretudo uma realização selvagem, embora cuidada, que cruza com outros momentos da carreira do realizador, como Sunshine, de forma bem vincada, principalmente na segunda metade do filme.
Após o holofote em Aaron Taylor-Johnson é a vez do bucolismo entre mãe e filho, onde Jodie Comer é estrela, invocando também uma busca à la Apocalypse Now por um homem misterioso (curiosamente careca e seboso, como Brando, no filme de guerra de Coppola), que abstractamente oferecerá respostas. É nesse trecho, com um brilhante Ralph Fiennes, que o filme assume a sua personalidade série Z, piscando o olho ao exploitation descomprometido, a um Mad Max zombificado, cruzando a violência com o onirismo desorientante de Sunshine. A espiritualidade ganha protagonismo para um clímax inesperado e certamente frustrante para quem queria apenas “mais e melhor”. É nessa liberdade criativa que o filme de Danny Boyle e Alex Garland mais brilha. Onde poderia existir uma sequela comum, existe uma subversão não só de expectativas como de formalismo de género. Onde existia seriedade, ainda que anarquista, no filme original, existe aqui loucura e exploitation de midnight session. A realização selvagem, mas consciente, em constante diálogo com a banda sonora metálica dos Young Fathers, fazem de 28 Years Later um dos exemplos maiores do cinema de género contemporâneo de massas para quem o quiser abraçar, e uma agradável reviravolta tonal para quem estiver disposto a não o levar demasiado a sério.
David Bernardino
Num mundo de franchises revisitados, 28 … Later foi sempre uma opção algo esgotada pelas explorações zombies dos anos que sucederam o lançamento do título original. De intermináveis iterações de Walking Dead à gamificação em The Last of Us, foi-se mantendo a adesão cultural ao estudo da violência primal em sociedades votadas à selvajaria da lei do mais forte. Nesse aspecto, 28 Years Later, o filme que devolve o franchise à dupla original de Danny Boyle na realização e Alex Garland no argumento, tenta muito mais ser uma reflexão de laços familiares, ao estilo do melodrama do mais recente A Quiet Place: Day One de Michael Sarnoski. Contudo, ao invés desse filme, que representava o retorno a um pré-apocalíptico mais reconhecível, 28 Years Later aprofunda a premissa do original mas insiste em trabalhar alguns dos temas do mesmo deslaçar social. Mantém-se o conceito de uma Grã-Bretanha em quarentena perante o resto da humanidade, deliberadamente evocando a memória recente do Brexit. O mundo surge como uma realidade à parte para Boyle e Garland, apenas usado como embrulho para desvios humorísticos motivado por choques culturais com elementos de fora. No seu cerne, 28 Years Later é um filme centrado na aceitação do luto na intimidade familiar do que necessariamente nas dinâmicas surrealistas da situação de quarentena.
Garland coloca-nos no contexto de uma pequena ilha ao largo da costa britânica que tem vindo a aglomerar um conjunto de sobreviventes em situação de auto-suficiência. Nela vive um rapaz dividido entre a obsessão do pai em expor o filho ao tirocínio da matança de infectados e a doença debilitante da mãe. Para Boyle e Garland, o estudo desta pequena sociedade não parece ser de especial interesse, pelo que cedo somos confrontados com uma premissa de lar quebrado e um coming-of-age prematuro. O zombie surge, então, mais enquanto mecanismo de condução de atenção do espectador para diferentes criaturas (o dito Alfa, os mais rápidos, os mais rastejantes) como se de um jogo de consola se tratasse. Menos interessante para Garland parece ainda ser a introdução da personagem de Ralph Fiennes, aqui apresentado como uma espécie de eremita que escolhe viver entre os selvagens por motivos de consciência. Sendo a principal tensão do enredo, a procura de Fiennes por parte de filho e mãe é estranhamente pouco envolvente e enfadonha. Os encontros com o mundo dos zombies são também profundamente marcados pela montagem desligada e frenética de Boyle e a banda sonora muitas vezes dissonante dos Young Fathers.
O tirocínio do jovem rapaz às mãos do incapaz Aaron Taylor-Johnson é substituído pela viagem de amor pela vida de Jodie Comer. Mas enquanto que o primeiro nos surge de imediato como algo estranho e sintomático de uma comunidade doente, a segunda padece de uma contradição tonal e uma artificialidade terminal. Na pira de Fiennes morre a humanidade que resta na grande ilha ao serviço da lembrança, mas também a subtileza dos diálogos de Garland, reduzidos a simples trocas de declarações de amor antes de terminarem na condução de um futuro filme sucessor. Um trabalho de escolhas, e um conjunto de escolhas questionáveis.
Hugo Dinis