‘Crimes of the Future’ – Dentro do Corpo

Miguel AllenNovembro 11, 2022

Num futuro próximo, após um aparente colapso tecnológico e sócio-económico, as pessoas perderam a capacidade de sentir dor. Crimes of the Future filma uma Atenas vazia e em ruínas que, por entre encontros enigmáticos, muito discurso falado, e sugestões ou nuances algo crípticas, é palco duma trama conspiratória (nunca totalmente clara) focalizada no corpo humano e suas transformações “contemporâneas”. As badaladas imagens marcantes de horror corporal não desviam Crimes dum filme algo sussurrado onde, apesar da tensão latente, a acção é rara, dando sobretudo lugar à exposição e teoria. Um noir misterioso de ficção científica em torno do corpo humano e a sua resposta ao ambiente que o envolve, um filme em torno do valor da arte como meio para atribuir um sentido à realidade humana.

O enigmático síndrome apelidado de “evolução acelerada” será aqui a causa da capacidade para certas pessoas conseguirem (deliberadamente ou não) criar novos e originais órgãos internos. Apesar de aparentemente inúteis, estas “adições” são, pela sua morfologia e situação, concretamente diferentes de simples tumores. Saul Tenser (Viggo Mortensen) e Caprice (Léa Seydoux) formam um duo que realiza performances artísticas, onde ela extrai cirurgicamente, perante uma assistência, os orgãos que ele cria internamente, previamente tatuados quando ainda dentro do corpo. As performances teatrais são populares, e Tenser, pelo seu portfólio de novos órgãos, uma referência do fenómeno – a ideia de registo e estudo dessas novas evoluções do corpo, ocupando uma parte importante do filme. De referir que neste futuro distópico, em decadência global, o corpo de Tenser depende paradoxalmente de máquinas – para dormir, para comer, para a sua arte – que funcionam como extensões ou como reforço do seu corpo (e cujo desenho orgânico relembra, por exemplo, as consolas de realidade virtual de eXistenZ).

Uma existência sem dor, Crimes of the Future retrata uma sociedade onde o foco de prazer sexual se encontra profundamente perturbado. Por entre um alargado interesse na mutilação partilhada, um certo voyeurismo perverso, alguém sugere que “surgery is the new sex”. Como em Crash (1996), as personagens interessam-se aqui no corpo enquanto elemento constituinte (enquanto a forma) do prazer, mais do que simples objecto de prazer. No futuro de Crimes, tempos de aparente transição, parece existir uma franca incompreensão sobre a “razão” dum corpo, ou o “direito” desse corpo no mundo; um aparente desinteresse sobre o destino de cada corpo, mas um entusiasmo sincero na desfiguração e mutilação do corpo, nosso e do outro. O espectáculo de Tenser evoca efectivamente que o “corpo é realidade/real” e é essa evidência concreta que as pessoas parecem procurar na Arte – aqui reduzida ao espectro da performance efémera, de tendências particularmente grotescas. Crimes retrata um tempo onde a própria humanidade do nosso corpo humano é posta em causa. Como apelidar afinal um corpo cujos órgãos são estranhos àquilo que a ciência apelida historicamente de “humano”?

Um grupo clandestino pretenderá, nesse contexto, impôr uma existência sustentada pelo mero consumo de objectos sintéticos, de origem artificial e fabrico humano. Dawn of the Dead, uma nova humanidade : corpos abertos, corpos mutilados, e corpos transformados. Crimes of the Future será o relato dum furtivo conflito entre “conformistas”, de peculiares e chocantes práticas vampirescas, e revolucionários do corpo, que imaginam a alba dum novo ser. Os “crimes” que o título do filme evoca, serão assim o reflexo duma natureza que escapa voluntariamente ao nosso entendimento actual, presente – como essa “arte” do futuro, os crimes e suas razões ser-nos-ão de certa forma irreconhecíveis ou incompreensíveis enquanto tal. No entanto, refira-se que o seu significado não surge também totalmente perceptível aos próprios personagens deste tal “futuro de transição”, da acção do filme. Cronenberg participa, no entanto, à discussão perfeitamente actual, do papel do homem em face dum mundo em profundo desastre ecológico, ainda que o filme não esboce uma franca preocupação com o “estado do mundo” de hoje, antes uma curiosidade sincera.

Repescando uma ideia e o título duma curta metragem sua de 1970, o realizador reencontra aqui uma série de temas trabalhados ao longo da sua obra. Através duma grande economia de meios particularmente bem sucedida, o filme constrói uma narrativa intrigante e solta através de imagens simples e despidas, espaços vazios, ricos em texturas e sombras, que contrastam com o horror grotesco dos espectáculos artísticos. Formalmente tranquilo mas profundamente inquieto, Crimes of the Future é carregado de interrogações que oscilam entre o filosófico, o evocativo, e o político, com surpreendentes desvios cómicos onde chega mesmo a arriscar alguns episódios mais tontos em torno das bizarras máquinas que tanto fascinam os personagens. A sugerida conspiração não chegará sequer a evidenciar-se, o enredo não encontrará uma verdadeira conclusão, apesar do desenlace (bastante anunciado) de Tenser. Mas o terrível repertório iconográfico trabalhado aqui por Cronenberg, será, novamente, um motivo forte de interesse e fascínio. O corpo aberto, a sua natureza, e a artificialidade com o que o transformamos. O afecto pelo bisturi.

 

Miguel Allen