Contra a Cinefilia Numérica – Rever Rio Bravo

Enrico ManciniMaio 30, 2024

Era dia 22 de Janeiro de 2022, sábado, o sol estava para nascer, a xícara quente de café esquentava minhas mãos. Eu estava prestes a assistir, pela primeira vez, Rio Bravo (1959), de Howard Hawks. Até hoje a memória daquela experiência me deslumbra, em especial uma das cenas, que parece suspensa entre as sequências do filme.

Dean Martin está relaxado, com um cigarro na mão e o chapéu na altura dos olhos, começa uma canção; Ricky Nelson, com um sorriso no rosto e seu violão, o acompanha; Walter Brennan pega sua gaita, com seu carisma desajeitado, sorri com seus dentes faltosos, e adiciona seus acordes à canção; chega John Wayne, assim como eu, com seu café, silenciosamente aprecia o momento.

Os sorrisos curtos dos personagens se intercalam, cada um em seu enquadramento, unidos pelos olhares e pela música. Ao fim da primeira canção, entram numa segunda, essa cantada também por Brennan. Esse é um momento de harmonia que, sem medo do aforismo, é perfeito. Não se fez algo muito melhor que isso no cinema naturalista clássico, até hoje.

Dois anos depois, há alguns meses, assisti novamente a Rio Bravo. A cena em questão era uma vontade à parte. Quando ela se estabeleceu novamente diante de mim, no ritmo impecável de Rio Bravo, a emoção tomou conta de mim. A cena, somada à memória que eu tinha dela, criaram um novo momento especial. O contraste natural entre o eu de antes e o de agora, e todo o caminho crítico e cinéfilo entre os dois, pairavam na mente, enquanto a cena acontecia, e as lágrimas caíam.

Feito o preâmbulo inicial, vamos ao tema da crônica. Mediado pelo uso do Letterboxd, existe um fenômeno na cinefilia atual: a falta das revisões. O cinéfilo opta, invariavelmente, por filmes que ainda ainda não viu. As watchlists são compostas por milhares de obras, quando não dezenas de milhares. O completismo é obstinado e ansioso. O filme seguinte é sempre mais importante do que o que está sendo visto agora. A culpa pela escolha é constante… Poderia seguir com as descrições. Eis um caso clássico de cinéfilo numérico. Eu mesmo já fui um. Trata-se de uma fase no percurso, que existe, mas precisa ser superada. A fome pantagruélica é uma bênção que precisa ser cadenciada de acordo com o tempo. O cinéfilo numérico, que está mais interessado em aumentar o número de filmes vistos que em estar efetivamente presente diante do filme que optou por assistir, é um nicho bem forte da cinefilia na internet. A vontade de conhecer filmes e diretores novos PRECISA ser incentivada, a curiosidade é o que mantém a cinefilia viva.

Porém, a revisão também é importante. Se a curiosidade é o vigor, a atividade mais pura da cinefilia, a revisão é o movimento. É nas revisões que os cânones são questionados e redimensionados. A euforia inicial diante de um filme pode se reafirmar e se consolidar, ou atenuar-se na revisão. A revisão cinematográfica é um estremecer necessário. Se a primeira assistida é uma inspeção, a segunda é uma visita.

Além disso – pessoalmente o que mais me interessa, e por isso a introdução tão longa – a revisão permite revisitar um equilíbrio já estabelecido. Assistir a filmes bons só não é melhor que revê-los no momento certo. A cena das canções em Rio Bravo sempre estará lá, à minha espera, quando eu sentir vontade. Não se trata, portanto, de uma crítica cega ao uso do Letterboxd ou da vontade de conhecer coisas novas. Acredito que o Letterboxd é um ponto de inflexão na história da cinefilia, uma ferramenta muito interessante (se usada de maneira correta), eu mesmo sou usuário frequente – outras crônicas poderão ser escritas sobre isso. Trata-se simplesmente da valorização da revisão, que não é, como alguns tratam, “tempo perdido”. É, nas medidas de Proust, “tempo redescoberto”.

Enrico Mancini