“O cineasta mais comercial do cinema português chama-se Manoel de Oliveira.”
João Botelho
A 5 de abril de 2011, o realizador João Botelho é convidado do programa “Os Culturistas”, à época emitido pelo Canal Q. A conversa, parcialmente sob o pretexto de promover o seu então-recente Filme do Desassossego, depressa descamba: insultado pelo que diz ser o desdém e escárnio com que aquele e outros espaços de discussão cultural tratam a produção nacional, o cineasta irrompe numa tirada de quase 20 minutos, praticamente impedindo os restantes membros de painel — incluindo o futuro secretário de Estado do Cinema, Nuno Artur Silva — de falar. “Este canal insiste em denegrir o cinema português como uma coisa que não interessa a ninguém (…) porque não o entendem, não gostam, se calhar adormecem. Se soubesse que era para isto não vinha”.
Vale a pena ver na íntegra. Vem a diatribe à memória a propósito de uma nova celeuma que torna a opor, no espaço público-mediático, imprensa e produtores culturais — desta feita, entre o crítico de cinema do Público Vasco Câmara e o realizador Vicente Alves do Ó, cuja mais recente longa-metragem, Portugueses, foi recebida com desdém pelo meio crítico e total apatia pelos espectadores nacionais, numa janela de distribuição que durou cerca de três semanas e em que o filme totalizou apenas 1.755 bilhetes vendidos, a um compasso de cerca de cinco pessoas por sessão.
Ponto prévio: a posição do realizador de Portugueses parece-me no mínimo frágil, por uma variedade de razões, que vão desde a descaracterização que faz do meio cinematográfico português, ao afirmar à Agência Lusa que quis “abordar ‘coisas que a maior parte do cinema português não fala (…) sobre as pessoas e as histórias de quem ninguém fala” — o cinema português terá certamente os seus problemas, mas um número limitado de vozes e temáticas não é seguramente um deles (menos ainda quando o tema em apreciação é o 25 de Abril) –, bem como a crítica que faz aos modelos de financiamento estatais e ao gatekeeping cultural de instituições como o ICA, que não permitem que filmes como o dele sejam financiados… isto a propósito de uma obra para a qual recebeu centenas de milhares de euros em dinheiros públicos, e de uma carreira ao longo da qual tem sido regularmente financiado pelos poderes culturais do Estado.
Seja como for, o interesse aqui não está em litigar quem tem razão. Está, isso sim, em apontar as formas como as posturas em evidência traem os preconceitos e vieses de ambos os lados da barricada sobre aquilo que é o cinema português. E, com sorte, dar pistas para uma reflexão sobre a forma como essas lógicas continuam a impedir o seu desenvolvimento, e um entrave à sua relação com o público que, por direito, devia ser o seu: o português.
Comecemos com uma constatação óbvia, mas ainda assim curiosa: quer Botelho, quer do Ó, ressentidos contra o que entendem como o destratamento dos poderes culturais perante o seu trabalho, estão nos antípodas um do outro na sua respetiva concepção de cinema. O primeiro está muito mais próximo daquilo que o segundo descreve como a “política de gosto cada vez mais assente na relevância internacional e cultural dos projectos”. Em todo o caso, Vicente Alves do Ó atribui a João Botelho a inspiração para o modelo ambulante de “digressão nacional” que veio a adoptar com Filomena, que Botelho tinha aplicado com sucesso, precisamente, com O Filme do Desassossego.
À Lusa, e no artigo de resposta a Vasco Câmara, Alves do Ó defendia de forma mais ou menos explícita uma ideia de “cinema comercial” e de “sala cheia”, que incluísse todos os géneros e que apelasse a todas as classes sociais (algo que já encerra, à partida, uma lógica problemática), por oposição ao cinema “intelectual”, “de autor” e “para os festivais” que, no seu entender, compreende a vasta gama do que por cá se faz. Ora, na fadada intervenção no Canal Q há 14 anos, João Botelho também sobre isto falava, e se insurgia:
O cineasta mais comercial do cinema português chama-se Manoel de Oliveira. É mais comercial do que qualquer tipo que faça aqui 400 mil espectadores, meu querido. Porque o comércio não é o número de espectadores: é quanto é que custa e quanto é que rende. Os outros todos, que se dizem comerciais, não saem de Badajoz, tenho muita pena.”
Portugueses não fez 400 mil espectadores; fez mil e setecentos. Provavelmente nem a Badajoz chegará. Se olharmos para o passado comercial do cineasta, o cenário pouco melhor é: em 2019, Amadeo fez pouco mais de 13 mil espectadores; no ano anterior, a comédia romântica Quero-te Tanto não foi além dos 12 mil bilhetes vendidos; em 2017, Al Berto não superou sequer a fasquia das cinco mil pessoas. A pergunta impõe-se: que “cinema de sala cheia” é este de que Vicente Alves do Ó fala, e quando é que o irá alcançar?
O problema, que fique claro, não é de todo da responsabilidade de Alves do Ó. Antes, é uma lógica transversal à produção nacional e à política de apoios, que teima em cultivar uma divisão entre o “comercial” e o “autoral”, cujas ramificações históricas no nosso país são demasiado longas para aqui deslindar. Fiquemo-nos pela aceitação de que o primeiro é para as massas (incultas, leia-se) — é para entreter e encher programa, é o grau zero da cultura –, ao passo que o segundo é importante, é de prestígio e interesse nacional e, sobretudo, para consumo externo dos festivais e públicos cultivados do estrangeiro, ficando a distribuição em território nacional (uma preocupação secundária, na melhor das hipóteses) para meses depois de percorrido o circuito internacional.
Tal binómio não é apenas artificial: é insidioso e destrutivo da relação dos espectadores com a sua cinematografia. Reforça a ideia de que o bom cinema é uma arte burguesa e alienada, só ao alcance dos entendidos, bem como os estereótipos de que o “cinema português” é coisa chata, aborrecida, planos de 30 minutos de uma árvore ao som de poesia do séc. XVIII. Um estereótipo que (se é que alguma vez foi real) está há mais de uma década desatualizado, mas teima em persistir (quantas vezes me encontro na posição de ter de explicar porque é que vou ao cinema ver “um filme português”, perante a impassividade e o revirar de olhos do meu interlocutor). Pior, incute no designado “grande público” a ideia de que a única alternativa que tem são as adaptações pífias dos “clássicos” com tuk-tuks, os projetos de vaidade de “estrelas” televisivas, a televisão (mal) filmada. Isto se forem ao cinema de todo, e não se ficarem pelo conforto da telenovela de horário nobre ou do policial da Netflix.
Enquanto isso, aqui ao lado, em Espanha, Sirât, de Oliver Laxe, vai faturando à boleia dos prémios internacionais em Cannes. Vai, aliás, chegar a Portugal este mês, bem antes de O Riso e a Faca, de Pedro Pinho, ou Entroncamento, de Pedro Cabeleira, obras que marcaram presença no mesmo festival e foram altamente elogiadas e, no caso da primeira, premiadas na Riviera Francesa. Serão os espanhóis irremediavelmente mais “iluminados” do lado de lá da fronteira? Não creio. Parece-me, isso sim, que falta vontade de mudar o estado das coisas. Vontade de querer chegar às pessoas, não de uma forma condescendente, mas com elevação e respeito pela sua inteligência.
Aqui, por impopular que possa ser, também a crítica falha. No seu bastante acertado artigo sobre Portugueses, Vasco Câmara não deixa de resvalar para um tom de superioridade intelectual na sua reflexão, colocando o ónus da culpa no espectador por ter “abandonado” o cinema nacional. “O espectador português fodeu-se, efectivamente. Perdeu a oportunidade de participar na sua história”, termina, em alusão à conhecida declaração (hoje tornada meme) de João César Monteiro aquando da estreia de Branca de Neve, o seu “filme a negro”.
Não posso, aqui, concordar com o autor. Porque o cinema — e aqui Alves do Ó tem razão — é eminentemente uma arte popular. Foi-o desde a sua génese, nos cinetoscópios de Edison e nos nickelodeons do princípio do século, continua a sê-lo, hoje, na era dos blockbusters. E porque o papel da crítica não deve ser nunca de oposição a quem a lê (por muito que os leitores muitas vezes achem que é essa a função do crítico), nem de “ditar” gostos ou ser um barómetro objetivo do que é meritório e julgar quem não concorde. Deve, isso sim, fazer uso da sua subjetividade para abrir perspetivas e janelas a quem não sabe que elas lá estão, oferecer considerações e pontos de vista que desafiem e expandam a relação do espectador com a arte, de forma inclusiva e nunca exclusionária. Deve, no fundo, mediar — e temo, julgando por conversas que vou tendo dentro da minha bolha, que apesar de termos bons críticos, talvez não tenhamos bons mediadores.
Por último, as exibidoras e distribuidoras têm também um papel decisivo a cumprir aqui. Temos bom e variado cinema. Não há razão para um filme como On Falling, uma história convencional e convencionalmente bem-feita, que pouco tem de formalmente desafiante, passar tão ao lado do mercado nacional depois do sucesso que fez lá fora (e o mais triste é que ainda assim é o maior sucesso nacional do ano). O mesmo com A Vida Luminosa, divertido slice-of-life de João Rosas, que aborda de frente temas tão presentes como a juventude e a habitação. Não cabe na cabeça de ninguém que o recente Hotel Amor se vanglorie de ser “a melhor estreia nacional do ano”, num comunicado onde fala de três mil e quinhentos espectadores como se fossem três milhões. Mas estão a festejar o quê?
O circuito nacional tem de ser fortalecido. As distribuidoras têm de pensar em estratégias que vão para lá de colar meia dúzia de cartazes nas ruas e à porta dos cinemas de bairro, e têm de ter os meios para o fazer — ir para as redes sociais, para os espaços digitais onde as pessoas já estão. E, claro, de contar com o apoio dos exibidores, sobretudo das grandes cadeias, onde o cinema português é virtualmente inexistente.
Os hábitos de consumo treinam-se, os estereótipos combatem-se, assim haja um esforço concertado e duradouro nesse sentido. É chato, dá trabalho, mas a prazo vale a pena. É preciso, primeiro, reconhecer o problema e diagnosticá-lo. Não falar à volta dele, perdendo a floresta em meio das árvores e confundindo o sintoma com a causa, como o faz Vicente Alves do Ó e como, em certa medida, também o fazem Vasco Câmara e o próprio João Botelho. De contrário, o cinema nacional continuará em atrofia, com produção regular mas sem ninguém nas salas a ver. Uma árvore que cai na floresta sem testemunhas, sem emitir um som.