Cidade Rabat – A Ilha e o Arquipélago

Fará sentido falar em comunidade quando nos referimos às pequenas células da sociedade que se mobilizam em torno de uma ideia, ou mesmo na concertação de hábitos orgânicos aos elementos da comunidade, incutindo assim um certo sentimento de pertença. Naturalmente, uma comunidade não é indiferente à ideologia, à doutrina, ou à religião, leia-se fé, no entanto, em nenhumas delas reside a sua linguagem. Aliás, face à ausência ou apagamento destes ideários enquanto motivo e élan do quotidiano, a comunidade tornar-se–ia ela própria força motriz de um grupo de pessoas, consolidando uma identidade.

Por sua vez, o lugar do indivíduo há muito que deixou de ser o da catarse, ou mesmo de libertar-se do coletivo, simplesmente porque este último deu lugar ao digital, à plataforma. É fácil nomear fenómenos ou agentes responsáveis pelo ofuscamento da comunidade como objeto do quotidiano, quanto mais de farol. O desejo de pertença permanece. A boa vizinhança, o trato do e para com o outro, as relações profissionais, a leitura dúplice de predicados, tudo isso é análogo do estado do nosso ânimo.

“Cidade Rabat” abre com planos de escadas, portas e elevador de um prédio. O prólogo é ainda complementado por uma voz-off, que nos dá informações sobre os moradores passados e presentes. Vinhetas simples, talvez ardilosas, às quais não temos acesso sem ser pelas memórias de infância da protagonista. Curiosa forma de apresentação: “eu” através de “outros”, embora não disfarce um certo distanciamento, latente no desenrolar da ação posterior.

Apesar disso, vejamos, há sempre a família, último reduto do Homem. A protagonista tem uma filha adolescente em guarda partilhada e prepara-se para o luto pela morte da mãe. As elipses que veiculam estas informações sustentam-se indiferentes ao miolo que um espectador sensível procuraria. Não é que não haja tempo para sentir, apenas se tornou indiferente pensar em tal. Entre a burocracia de uma morte e a azáfama corrente o tempo esgotou-se.

Sabemos ainda, pelas elipses, que Helena trabalha em cinema. Espaço para indagar qual o lugar do artista no mundo fechado que as portas mudas do prólogo nos oferece.

As peripécias mais ou menos bem conseguidas da narrativa empurram, pela voz cordial de um funcionário público, a protagonista para um serviço comunitário num pequeno clube desportivo. É aqui que o afunilamento social até então prosseguido pelo filme, e não necessariamente pela protagonista que apenas deambula, se interrompe. Recupera-se a proximidade pela observação. Helena é gradualmente seduzida por aquilo que a atinge, nós também. Até que:

“Eu e o Marques já não vamos para novos…reparámos que sempre que a dona Helena vem…a loiça fica por lavar…ao contrário dos seus colegas…”.

E pronto! Do enlevo através da curiosidade, qual centelha, fomentada pelos rostos em fotografias antigas e os brilhos de taças por polir – tanta história por contar – a artista ressurge (até traz a câmara) para rapidamente ser advertida que é igual aos outros.

Em suma, não basta filmar a realidade. Na ficção, os detalhes cruzam-se, as personagens poderão crescer, existe uma certa gramática a ser respeitada ou não. Já a realidade, não se inventa, corre como um rio, e Helena apanhou o momento pungente do senhor Marques, um pouco disfarçado entre considerações desportivas.  Imediatamente a seguir, a câmara cede para um caso de sucesso, típico mecanismo de defesa quando a emoção embarga o raciocínio. Todavia aqueles segundos…sim, naqueles segundos em que Marques recorda, numa “dualidade de eu para mim”, aquela jovem atleta promissora que teve de partir,  qualquer enquadramento seria suficiente. A comunidade vingou.

“Cidade Rabat” tem os seus melhores momentos no silêncio. A comprová-lo está o cómico de situação, consequência do inesperado, palpável na representação amadora das personagens secundárias. Veja-se a cena de inversão de marcha, ou o filme dentro do filme, ilustrações que ganham um teor caricato na sua verossimilhança. Em sentido contrário, os episódios com música diegética turvam-nos o percurso de Helena. Decerto, seremos pessoas diferentes a dançar ou quando entramos na brincadeira. Alegar-se-á que a introdução de tais momentos ajudam à respiração do arco narrativo, contudo, não são credíveis.

Paralelamente, regista-se ainda um uso cativante de tons primários, sobretudo na primeira parte do filme. Destaque para o espantoso azul escuro da agência funerária, ou o encarnado na sala da casa da mãe da protagonista, deliberada ou não, tal paleta envolve-nos na trama.

Por fim, lamenta-se a nuvem ambígua que é a relação de Helena com a filha. Se a comunidade pode ser agente propulsor de um real entendimento entre nós indivíduos, a família seria o elo entre as duas partes. Passa um pouco à margem na parte final do filme, se a protagonista partilha as suas pequenas descobertas, mesmo considerando a conversa com a irmã, outra personagem que poderia estar mais presente. Há pois uma ilha que se queria reluzente para o restante arquipélago.

No filme “You can’t take it with you”, Frank Capra coloca, de uma forma anárquica, uma multidão a cantar, tocar instrumentos, dançar, lutar, gritar, em jeito de despedida de uma fita inocente que se queria sobre o maior número de personagens possível. “Cidade Rabat” brinda-nos com jovens a correr, uns mais depressa que os outros, todos alegremente, cortando depois para uma mulher a comer um bolo. Portanto, desculpa Sartre, mas os outros também podem ser deliciosos.

Eduardo Magalhães