Child of Divorce (1946), de Richard Fleischer – As crianças da RKO

Eduardo MagalhãesJunho 13, 2025

Child of Divorce não é um filme sobre o divórcio, nem sobre o egoísmo, quando muito seria sobre a inevitabilidade do egoísmo. Nos parcos cenários da RKO, uma família de três desintegra-se aos poucos. Não é uma morte lenta ou decadência acelerada, antes uma rota de culs-de-sac em que cada personagem se desliga do que outrora pensou, amou e talvez tenha vivido. Na ausência de um dramalhão suportado em grandes diatribes, o silêncio rouco das paredes das diferentes casas em que vive a pequena Bobby (Sharyn Moffett), que, como tal, não tem casa.

Na cena em que as crianças descobrem a mãe de Roberta aos beijos com o amante, Fleischer podia ter sugerido o testemunho de um pequeno delito. Se o é, porquê a tranquilidade, a escusa de artifício? As crianças assistem à prova do adultério e os aparentes meliantes são as próprias assim que começam a troçar de Bobby e do que viram. Neste quadro, marcado pela contradição em que na inocência jaz a infração e na infração a inocência, sopra a neblina do prazer que contesta a realidade. Bobby tinha uns pais bondosos, vivam num lar feliz, na terra das pessoas livres, e toda esta composição entendida como realidade mais não era que isso.

E queria a RKO fazer deste filme, em que se assume a realidade como uma construção, um veículo para tornar Sharyn Moffett na sua Shirley Temple! Não admira que falhasse…

Ver outras crianças noutros filmes da época, à imagem de Shirley Temple dos thirties e não só, não é ver crianças, é ver performance garrida. Crianças travestidas de adultos, certamente admiráveis peças de ourivesaria ostentando o brilho que o molde precioso confere. E há até nessa galeria pop um certo cunho mitológico: o que são as vedetas adolescentes se não fadas e faunos do nosso tempo? Até à parelha Rooney/Garland o público se rendia, sendo que aí os produtores da MGM tinham a sageza necessária para não peneirar os resíduos de meninice. Mas meninice não é primeira nem segunda infância.

À RKO, estúdio permanentemente à beira de um ataque de nervos, que nem sequer chegou a ser vítima do colapso do studio system tal o desmancho de que foi alvo, permitia-se, surpreendentemente, tudo. Em 1946, o estúdio já tinha celebremente abandonado “genius” em prol de “showmanship”, fruto das desventuras da sua criança mais famosa – um tal de Charles “Citizen” Kane. Child of Divorce aparece como prova desse retorno ao indefinido, ao questionar da verdade como algo intrínseco à ideia.

O filme abre com o interior de uma casa de bonecas com a rapariga em entusiasmada tertúlia com o pai. Trama encetada, o namorado da mãe de Bobby oferece-lhe uma casinha ainda melhor. Escusado será revelar algo sobre o desfecho, o que é interessante é a implosão nos grandes planos da mocinha. Não levamos nada deste lugar sem ser os outros, e eu já não tenho outros… Estes que aqui estão são meus pais, e o que eu entendia como pais não o era. Ou seja, o desabrochar imediato que se prolonga em espasmos morosos – andar de casa em casa, explicação em explicação, brinquedo em brinquedo, até as crianças malévolas retrocedem para uma empatia sincera sem qualquer laivo de pena. Como esquecer o momento, meses passados do divórcio, em que chega em animada brincadeira a casa com o pai, entram no quarto dela, toca (de novo) na casa de bonecas, e, do sorriso irrompe um choro nervoso.

Bobby acaba por ter de aprender a passar tempo consigo. Apenas. Fleischer tem a veleidade de um geómetra. Bobby prepara-se para jantar com o pai, senta-se à cabeceira e uma mulher estranha vai ao seu encontro. Descartada a simetria da longa mesa de jantar deserta, o ângulo com o qual é assinalada a entrada desta mulher é particularmente revelador. A mulher senta-se, o pai chega. Entre os planos com as reações mudas de Bobby, o cenário transforma-se. Luz! Uma vela que separava Bobby da senhora, aproxima agora o pai desta última deixando a criança à margem. A cabeceira que abandonou momentaneamente é agora ocupada. Como um ponto com cota negativa, em afastamento negativo, Bobby naquele silêncio que tartamudeia uma vontade de fome engolida até ao seu eclipse.

Permeia o filme também uma recusa categórica na imbecilização da criança. A cena com o juiz, uma cabeça de águia deferente ao imbróglio caído sobre Bobby, podia ser uma catástrofe nas mãos de um realizador inepto. Pergunta a pergunta, a cena é menos sobre as infidelidades dos pais e mais para concretizar o exaspero provocado pela fúria, ora em satisfações ora em justificações, vociferada pelos advogados. Daí que o divórcio do título não seja a causa, mas um impulso para a viagem sentimental de Bobby.

É injusto pensar que a discussão moral da história passaria pela reconversão de um dos pais, abdicando, potencialmente, da reconstrução da vida familiar com um novo companheiro, pela entrega à filha. Tal filme já existe, chama-se “O Filho Único” de Yasujiro Ozu. Aí, o acto voluntário de devoção maternal também acaba por falhar. O choro da mãe japonesa é o da tomada de consciência pelo vazio das horas, do trabalho, insistindo numa existência que não logrou tentar ser outra coisa.

Em Child of Divorce, estamos ainda no patamar da infância. No entanto, a marca do falhanço está lá. A compreensão súbita do intolerável vazio que nos sustenta. Sem nenhuma pecha eivada de nostalgia, Roberta não pensa na infância que não viveu, antecipa o futuro. Nas suas palavras uma projeção do imaginário infantil convoca a ideia de um lar feliz, de uma filha a quem vai ler muitas histórias. A amiga Peggy, também ela “child of divorce”, enjeita a melodia do Home Sweet Home dos sinos: “at first you do (like it), maybe they play it to break you in or harden you up”. E, no fim, Roberta percebe a chave. Não é possível perseguir o tempo. Esses incólumes volte-faces, ir e vir da casa da mãe ou do pai iriam, irremediavelmente, terminar.

Roberta ensaia quase uma saída horaciana. Despida de qualquer pretensão de ternura, visto que qualquer lastro conduzia a uma antecipação rasgada pelo tempo, prefere o som da música. Essa sua visão de uma filha pequena, pela qual diz que abdicaria de estudos superiores, é a renúncia metafísica da criança. Antecipa e rebate António Nobre no seu poema:

Na praia lá da Boa Nova, um dia,
Edifiquei (foi esse o grande mal)
Alto castelo, o que é a fantasia,
Todo de lápis-lazúli e coral!

Resta a música. Não perseguindo o tempo, a música está à margem seja no barulho do vento ou na indolência de um rio. E não foi Child of Divorce uma canção de 62 minutos? De curta duração, melodia fácil e melancólica nas palavras. Insistir no sonho, saber que irá falhar, que importa? A realidade do passado e do presente, dos pais e dos filhos, não é relevante, mais importante será não trair o ideal que traz da infância. Ver através do quarto dessa infância e pensar, como fez pela música outro grande edificador de castelos na praia:

It wasn’t too long ago when our folks were
Were going through the same thing we are now
But one thing they’re forgetting
A thing they’re not regretting
They ran away and got married anyhow

 

Eduardo Magalhães