Charlie Shackleton, jovem ensaísta e cineasta britânico, aterrou ontem no Aeroporto Humberto Delgado para o início de uma retrospectiva em foco, por parte do IndieLisboa, que percorre grande parte da sua obra, enquadrada sempre por conversas com o realizador. Charlie vem de um background de crítica de cinema, e os seus filmes integram e operam a partir de uma profunda consciência e exploração de género (documentário, terror…), naquilo que Antonio Rodrigues chama acertadamente um exemplo da forma que hoje volta a ter a cinefilia – “consciente, afectiva e cultural”. Convidamos o leitor a explorar este óptimo programa do IndieLisboa – e conversámos com Charlie a propósito das suas longas-metragens, inclusive a mais recente, The Zodiac Killer Project, que estreou este ano em Sundance.
Olá Charlie. A tua longa Beyond Clueless (o trailer são só imagens originais, claro) é composta por excertos de dezenas de teen movies (American Pie, Mean Girls…), vindouros mais ou menos de 1995 a 2005. Em Fear Itself, a mesma coisa, com uma colecção vasta de filmes de terror. O teu novo filme, The Zodiac Killer Project, é uma desconstrucção dos documentários de true crime, e usa excertos de muitos destes trabalhos da Netflix e da HBO. Estou correcto em assumir que uma das tuas ferramentas de trabalho é uma equipa de advogados? Como é que funciona trabalhares com e exibires estas imagens?
Alô! Então, uma grande parte do meu trabalho é feita com base no que é chamado, no direito britânico, de fair dealing; conhecido na maioria dos países como fair use: é um conjunto de disposições dentro da lei dos direitos de autor — ou, mais precisamente, um conjunto de excepções a essa lei — que permite utilizar excertos do material protegido para um de vários fins. No meu caso, esse fim tem sido muitas vezes a crítica de cinema, em que estou a criticar diretamente o conteúdo que estou a utilizar. Existem igualmente excepções para a paródia, o pastiche e outras coisas parecidas. Foi uma das primeiras coisas que me levou a realizar filmes: eu trabalhava como crítico de cinema, e de certa forma a crítica cinematográfica escrita assenta nas mesmas excepções previstas nos direitos de autor: podes citar uma linha de diálogo de um filme sem teres de pedir autorização. Quando descobri que podia aplicar essa lógica também em filme, pareceu-me uma possibilidade realmente entusiasmante — a ideia de poder reapropriar, remixar e contrastar fragmentos de material existente “sem pedir autorização”, para criar um novo ponto de vista e uma nova obra.

Como disseste, isto fez com que durante grande parte da minha carreira, um dos meus principais colaboradores fosse um advogado. Para mim, essa relação tornou-se uma das mais valiosas e criativas no contexto do fazer um filme: muitas vezes, as questões que é preciso colocar para perceber se o uso de determinado material se enquadra no fair dealing são, na verdade, perguntas extremamente úteis do ponto de vista criativo: porque é que estou a usar este excerto? Qual é a minha intenção? Estou a usar só o bocadinho que preciso para transmitir a ideia? — acho que não são só perguntas jurídicas – são também muito úteis para qualquer artista se questionar sobre o que está a fazer. Sempre vi este processo como muito produtivo criativamente.
Onde é que desenhamos a linha? Se meteres um filtro por cima de uma imagem do Sexta-Feira 13, ou mudas as cores, essas coisas ainda estão cobertas pelo fair use?
É muito vago. Tudo o que podes fazer é basear-te nos precedentes legais que já foram estabelecidos – e pelo menos no Reino Unido, há muito, muito poucos, porque estes casos quase nunca chegam a tribunal. Por isso, estamos a trabalhar com base, digamos, nas melhores interpretações disponíveis de textos legislativos muito vagos. Repara, aquela coisa que as pessoas fazem no Youtube quando querem fazer upload de algo com copyright e mudam o aspecto ou o pitch do áudio para tentar evitar os algoritmos que procuram material com direitos: hoje em dia, quase que já não é uma questão tão importante “qual é a minha posição legal?”, mas sim “de que forma é que as plataformas vão restringir a minha capacidade de utilizar material de terceiros?”. Posso realizar um trabalho perfeitamente de acordo com a lei onde faço sampling do Casablanca. Mas se sempre que o colocar no Youtube ou no Vimeo for deitado abaixo, não me serve de muito que o filme seja tecnicamente legal.
No Zodiac Killer Project, inclusive, a coisa complica mais, porque o conceito do filme é que não conseguiste os direitos para adaptar um livro de true crime e estás a mostrar-nos qual era a tua ideia, sem infringir os direitos de autor que não conseguiste obter. Como é que se faz uma coisa assim? Inclusive citas frases do livro no filme, e dizes que as tens de justificar ao teu advogado.
É a mesma lógica. Com esse, como dizes, havia muitos mais elementos legais a considerar do que na maioria das coisas que fiz, porque havia também questões como a difamação, o facto de se estar a falar de um crime real que continua por resolver, de um suspeito nesse caso. O suspeito em questão já não está vivo, o que torna a coisa um pouco mais fácil de gerir, mas mesmo assim, obviamente, quando se trata de algo tão sério, e de uma questão criminosa, é preciso ter muito cuidado.

Há todo o uso de fair dealing envolvido no filme — os excertos dos documentários da Netflix por exemplo, que mostro ao longo da longa-metragem. Para o material do livro, obviamente, não tenho os direitos. Esse é o próprio ponto de partida do filme: não o posso adaptar. Mas, como disseste, isso não significa que não possa citar partes dele, até certo ponto, mas essas citações têm de ser muito breves, e apenas o que for estritamente necessário para sustentar o meu argumento. Ao longo do filme leio uma série de citações, mas são tiradas de um livro de 400 páginas. Representa uma percentagem muito, muito pequena do conteúdo total. E o que eu practicamente não faço é comentar a narrativa do livro.
No filme, sou constantemente forçado a dizer: “nesta parte da narrativa acontece algo que não posso dizer o que é”. E isso também se tornou num desafio criativo muito interessante — até que ponto é que se consegue dar ao espectador a sensação de ter ouvido uma história, mesmo quando se está a omitir a grande maioria das peças. É incrível para mim que algumas pessoas saiam do filme com uma opinião, de uma forma ou de outra, sobre se aquele suspeito era ou não o Assassino do Zodíaco.

Acho que uma das coisas que faz os teus filmes destacarem-se é o trabalho com o sound design e a banda-sonora original. No Zodiac Killer, há sempre esta espécie de xilofone que toca sempre que ilustras alguma coisa…
Trabalho quase sempre com o mesmo compositor, o Jeremy Warmsley. Nesse filme, ele insistiu bastante para que – apesar da maioria dos batuques do xilofone soarem idênticos – são todos tecnicamente diferentes. Ele está muito orgulhoso disso. Cada um é um toque distinto na madeira, não é o mesmo clip [risos].
Já o Beyond Clueless é quase viciante de ver pela banda-sonora e pela montagem, dá vontade de ter a tocar na sala de estar…

Essa banda-sonora, muito pop e instrumental, foi escrita pelo Jeremy e pela sua parceira. Na altura tinham uma banda chamada Summer Camp. Uma das melhores decisões que tomámos, um bocado sem saber como as coisas funcionavam, foi que começámos a trabalhar na música ao mesmo tempo que eu comecei a escrever o filme, portanto as coisas estavam a construir-se em paralelo. E muito do filme foi concebido em resposta, e certamente montado em resposta à música que eles faziam e me iam mandando. Eu e o Jeremy, agora depois de vários filmes, continuamos este processo de acompanharmos a criação da música em paralelo com a minha conceptualização do filme, não anda um à frente do outro, influenciamo-nos.
No Zodiac Killer Project, descreves estes cliches de documentários do género: os genéricos com passaportes, com nomes riscados e mapas sujos. As cenas de interrogatório onde há um candeeiro de tecto que por alguma razão abana… estava a pensar nisso em relação ao aspecto da escola secundária no Beyond Clueless. Não sei como é que o teu secundário foi, mas o meu não foi nada assim: aquilo parece-me tudo uma espécie de sonho louco americano. A análise que fazes no filme, estilo constatação objectiva, é dessa invenção?

Sim, comigo foi a mesma coisa, a minha adolescência não se pareceu em nada com um teen movie americano. E, no entanto, sempre que surgem esses pequenos signos, reconhecemo-los automaticamente, vindas de todas as outras vezes em que os vimos. Também nunca estive numa sala de interrogatórios policiais, mas vi tantas representações disso na cultura popular que essas bengalas visuais e narrativas funcionam comigo uma e outra vez como se se estivessem a referir a algo que eu tivesse realmente vivido ou experienciado. Para mim é o que torna interessante o brincar com o género, ou sequer o olhar para o género — o facto de toda esta linguagem condensada ser tão automática e tão inconsciente, tanto da parte de quem cria como obviamente da parte de quem assiste. Os desvios a essas fórmulas tornam-se ainda mais fascinantes para mim. No limite, acho que se pode usar essa familiaridade para seguir em direções estranhas. Usar a sensação de segurança e previsibilidade para depois brincar. Os melhores filmes de género são assim. Os piores, claro, são uma linha de montagem onde tudo se torna completamente idêntico.
E de onde é que vem, esta concepção hivemind de que o secundário é assim, ou de que um interrogatório da polícia é assim?

É estranho. Com os filmes de adolescentes, a coisa parece ser tão vasta que é difícil fazer realmente um rastreio da origem de um certo cliche ou convenção. No caso do true crime, curiosamente, é um pouco mais fácil perceber essas origens, porque tantas coisas vêm diretamente de The Thin Blue Line (1988), o filme do Errol Morris. É um bocado impressionante. Voltei a vê-lo enquanto trabalhava no Zodiac Killer Project. No meio de tanto conteúdo de true crime da Netflix, da Amazon, da Hulu, foi mesmo incrível perceber o ponto em que aquilo tudo ainda parece fazer referência ao Thin Blue Line. Tanto em termos das suas intenções — todos parecem querer ser o Thin Blue Line, no sentido dessa coisa raríssima: o documentário de true crime que realmente consegue provar um caso ou levar à exoneração de alguém; mas também esteticamente — o modelo continua incrivelmente rígido, mesmo depois destas décadas todas.

Para o Beyond Clueless e o Fear Itself, viste muitos filmes em pesquisa ou lembravas-te de cor destes filmes todos?
Com o Beyond Clueless, tentei ver mesmo o maior número de teen movies daquela altura que existiam. Fui muito deep. Vi filmes americanos incrivelmente obscuros que não tiveram qualquer impacto quando saíram. Acho que isso beneficia aquelas sequências onde estou a cortar entre vinte, trinta exemplos de uma coisa: tinha muito material por onde escolher. Mas depois disso, senti que era quase uma pena o filme não ter sido mais pessoal, mais diretamente ligado aos filmes com que eu próprio tinha uma relação enquanto adolescente. Eles estavam lá, claro, mas misturados com tudo o resto. E por isso, quando abordei o seguinte, o Fear Itself, até porque, em teoria, o conjunto de material para esse era ilimitado — não só todos os filmes de terror alguma vez feitos, mas também qualquer outro tipo de filme que abordasse o medo ou o terror de alguma forma — percebi logo que nunca iria ser exaustivo, que eu nunca iria ser o maior conhecedor de filmes de terror do mundo. Há milhões de pessoas no mundo que poderão apregoar para si esse título, mais do que eu. Por isso, decidi activamente tornar o filme mais idiossincrático.

E é interessante: os filmes com que acabamos por nos ligar no contexto de algo tão primitivo como o medo, estas experiências formativas de visionamento que temos em muito jovens e que nos assustam profundamente – muito raramente são, sabes, os grandes filmes de terror emblemáticos. Quando perguntava às pessoas: “Que filmes é que te lembras que te assustaram em criança?” não diziam propriamente The Shining, O Exorcista, etc. Era sempre algo estranho e meio esquecido, ou não muito respeitado – filmes que tinham apanhado essa pessoa no momento exacto em que estavam mais impressionáveis, vulneráveis. Comigo foi igual.
E os teen movies do Beyond Clueless são quase todos da altura entre 1995 e 2005 porque também…
Sabes, eu costumava ter imensas razões para explicar esse facto, e algumas até eram meio verdade: houve uma queda enorme no número de teen movies produzidos depois dessa altura, porque muita dessa energia passou para os blockbusters, para os filmes de super-heróis que várias vezes tinham adolescentes como protagonistas, portanto, eram quase como que os novos filmes de adolescentes; mas aquilo que de alguma forma sempre evitei reconhecer foi que a verdadeira razão para me focar nesses filmes é que são os filmes com que cresci, com os quais tenho uma relação pessoal. E é por isso que estou muito mais interessado em desconstruir esses do que, por exemplo, os filmes do John Hughes (The Breakfast Club, Ferris Bueller’s Day Off), que foram feitos 10 anos antes de eu nascer. Por alguma razão, provavelmente porque me parecia demasiado egocêntrico, não conseguia admitir isso na altura, mas é obviamente essa a razão.

Estás com quantos anos?
33. Portanto nasci em 91. Quando cheguei à adolescência, andava a ver estes filmes todos feitos nos anos 90 e no início dos anos 2000.
Ambos estes filmes têm uma voz-off escrita por ti que acompanha o filme todo. Mas no Beyond Clueless o tom e o texto é geral, quase antropológico, sobre o comportamento dos adolescentes, e no Fear Itself é mais pessoal, fala de um acidente, de uma cirurgia, de pesadelos íntimos…
Acho que aquilo que me atraiu em ambos os casos foi subverter a forma como as pessoas falam sobre esses dois géneros. Por exemplo, os filmes de adolescentes não são nada levados a sério, evidentemente, enquanto cinema, são falados de uma forma muito pessoal, ou então com algum desprezo – apeteceu-me e divertiu-me a ideia de escrever uma espécie de análise sóbria e metódica sobre este género aparentemente leve e superficial: o olhar antropológico sobre o pequeno universo selado do teen movie.

O terror, pelo contrário, é um género que está constantemente a ser abordado em termos muito académicos, e estudado, e analisado e por aí fora. Reagi contra isso e preferi fazer algo decididamente não-definitivo. O meu filme não pode de maneira nenhuma ser “a palavra final” sobre, sei lá, o Jaws — até porque a coisa de que a voz-off fala quando estamos a ver a cena do Jaws nem é propriamente sobre o Jaws. É algo muito mais abstrato, mais próximo de uma ruminação que, idealmente, informa a forma como vês o excerto, mas sem o definir.

Além destes filmes, também vais mostrar na Cinemateca The Afterlight, uma outra longa tua que pelo que percebi, só existe numa única cópia sem qualquer backup. O que é que podemos esperar desta sessão?
Então, o The Afterlight é um filme de colagem construído a partir de centenas de pequenos fragmentos de cenas retiradas basicamente da primeira metade da história do cinema, portanto mais ou menos entre 1900 e 1960. O filme pega nesses pequenos momentos, muitas vezes bastante mínimos em termos do que está realmente a acontecer, pode ser só uma pequena ação ou uma personagem a reflectir sobre algo — reúne todos estes fragmentos e constrói algo que se aproxima de uma nova narrativa, embora muito solta, muito associativa. São filmes de toda a parte e de várias décadas. Aquilo que os une: é o seguinte: todas as pessoas que aparecem no ecrã já não estão vivas.

E há também outra camada conceptual por cima disso: o próprio filme existe apenas como uma cópia em película de 35mm. Existe apenas uma cópia, só pode ser exibido num lugar de cada vez. Eu próprio não tenho um backup. Não existe qualquer versão digital do filme. Foi todo editado digitalmente e depois fizemos a cópia em película com uma tecnologia chamada Cinevator, que permite fazer cópias em filme sem ter um negativo. Na noite antes da estreia mundial – mas confirmámos primeiro que funcionava – destruí todos os ficheiros digitais, substituí o espaço vazio no disco rígido com outras coisas e pronto, levei o conceito a sério. Já não vejo o filme há bastante tempo, inclusive, não tenho forma de o ver a menos que esteja presente nas projecções. E sempre que é exibido, como é inevitável com uma cópia analógica, desgasta-se ligeiramente. A ideia é que, ao ser exibido, ao encontrar o seu público, está também lentamente a deixar de existir.
Onde está a cópia neste momento, quem é que a tem?
Neste momento está na alfândega, no Aeroporto em Lisboa. Está lá há uns dias. Mete um bocado de medo porque a última vez que tentámos fazer uma projecção em Lisboa, nesta altura o ano passado, a FedEx perdeu a cópia. Pensei que estava perdida permanentemente porque eles não sabiam dela durante meses, e falhou-se a data de projecção. E eles disseram: olhe, consideramos este objecto perdido, podes apresentar um pedido de indemnização pelo valor da caixa, ou uma coisa assim.
O valor, que não tem valor!
Sim, sim, e tudo o que eu podia reclamar era tipo 200 euros pelo material. Mas depois de pedir essa indemnização, apareceu de repente. E o IndieLisboa decidiu programar para este ano. Já passou noutros sítios entretanto. A ver se chega à Cinemateca em breve. Hei de espreitar um pouco da sessão. Estou sempre curioso para ver como está o aspecto da cópia.
Onde está a cópia quando não está algures a ser projectada?
Está numa caixa atrás do meu sofá… numa sala com temperaturas muito pouco controladas. Portanto não são as melhores condições. [risos] Gosto quando é a responsabilidade de outra pessoa. Quando está em trânsito, para outras pessoas se preocuparem com ela. Quando está comigo fico um pouco assustado. Ter o filme feito foi muito assustador durante um bocado, mas a partir de certa altura a coisa atravessou um ponto onde já pessoas suficientes o tinham visto e… mesmo quando se perdeu o ano passado, fiz as pazes com o assunto. Sinto que o filme vive nas memórias de algumas mil pessoas agora. Mas fico feliz que seja visto mais vezes.
Finalmente, o festival também vai passar Paint Drying, que é um filme de 10 horas, numa sala especial do São Jorge. O que é isto, ao certo?
É um projecto que fiz há 10 anos, no final de 2015, e que foi, basicamente, um protesto contra o British Film Censor Board. No Reino Unido, se quiseres lançar um filme nas salas de cinema — mesmo que seja apenas numa única sala —, tens de pagar ao conselho, a essa entidade, para que eles vejam o filme e lhe atribuam uma classificação etária.
E isso é caro.
Na altura — pelo menos há 10 anos, eles cobravam exatamente a mesma taxa a um realizador independente, que está a distribuir o filme por conta própria, como eu, do que à Disney para lançar a Branca de Neve. E, obviamente, para a Disney, mil libras não são nada — é uma quantia que mal aparece no orçamento. Mas eu tinha distribuído o Beyond Clueless por conta própria, e essas mil libras eram basicamente tudo o que tinha para a distribuição. Achei tudo muito frustrante, e a partir dessa frustração tive uma ideia — a ideia de que o inverso da equação também devia ser verdade.

Se tinhas de lhes pagar para verem tudo o que quiseres lançar, então eles também eram obrigados a ver tudo o que pagasses para submeter – daí surgiu a ideia de fazer um filme financiado por crowdfunding que seria, literalmente, uma filmagem contínua de tinta branca a secar numa parede de tijolo. O Censor Board cobrava por minuto de duração, portanto a lógica da campanha era que cada pessoa que doasse o valor correspondente a um minuto, que era qualquer coisa como 8 euros, estaria a acrescentar um minuto ao filme. No fim, participaram pessoas suficientes para que fosse possível submeter um filme de 10 horas e 7 minutos de nada. O conselho, com todo o profissionalismo, sentou-se e viu o filme no início de 2016, atribuindo-lhe um certificado universal, portanto, sem material ofensivo ou prejudicial. E viram mesmo, na altura até tinham uma resposta pronta para os jornalistas que perguntassem, porque o projecto trouxe-lhes muita atenção da parte da imprensa. Soube depois que viram em turnos de duas pessoas, uma hora para cada par – porque tinham receio que mais do que isso e as pessoas iriam dormir. Viram assim, uma hora cada, acho que deu para incluir o pessoal todo.
Mas viram mesmo? Suponho que podias ter um frame de alguma coisa ofensiva no meio…
Sim, sim. Principalmente, acho que eles não gostaram da atenção, portanto a última coisa que queriam era que se descobrisse que se tinham baldado, ou que tinham tratado a coisa de forma diferente do que qualquer outra submissão. Se isso acontecesse estariam tecnicamente, aliás, a cometer fraude, porque paguei-lhes para verem o filme. Eles queriam despachar o assunto, emitiram o certificado no mesmo dia que terminaram de ver o filme, foi tipo 9 horas num dia e viram a última no seguinte – a informação estava disponível. O report era só: “é tinta a secar numa parede”. Portanto percebo que não tenha demorado muito tempo a escrever.
O projecto acabou por me acompanhar nos anos seguintes. De vez em quando aparecia também em podcasts ou na primeira página do Reddit, mas nos últimos anos, em particular, houve um muito grande ressurgimento. Em 2020, um utilizador do Letterboxd usou a página do filme para um post completamente off-topic sobre a sua vida pessoal, e isto por alguma razão deu origem a uma cena onde já qualquer coisa como 17 mil pessoas escreveram “críticas” ao Paint Drying para falar sobre coisas que estão a acontecer nas suas vidas. Tornou-se assim num fenómeno cultural incrível que não tem nada a ver com o projecto, nem comigo. Ganhou uma vida própria. A exibição no IndieLisboa vai ser apenas a segunda vez que o filme é exibido publicamente. Em teoria, agora as pessoas vão poder metê-lo no Letterboxd mesmo, embora não consiga imaginar que alguém fique na sala a ver tudo.
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Dia 9 de Maio, Sexta-Feira, depois da exibição com Q&A de The Afterlight (21:00) na Cinemateca, o público é convidado a acompanhar o realizador num passeio guiado até à Sala Rank do Cinema São Jorge, onde está a ser exibida Paint Drying — “um happening íntimo que assinala o desfecho da instalação épica” – e que promete ser memorável.
A Tribuna do Cinema gostaria de agradecer a Charlie Shackleton, a Miguel Branco, e a toda a equipa do IndieLisboa.