Este artigo contém spoilers para “Afire”;
Quando era míudo, tive um pequeno revés com um nemesis. Ele encontrava-se prestes a publicar um livro. Prosa, com duas centenas de páginas. O rapaz tinha conseguido ficar com a míuda de quem eu gostava, e a certo ponto, cheguei a buscar digladiar-me nessa mesma arena, escrevi um pequeno poema sobre uma praia, a que a ela lhe agradou sobremaneira, embora não de forma a que tivesse algum real impacto no nosso triângulo. Como é óbvio, evitei o lançamento do livro e desejei nunca mais me lembrar daquele assunto, porém acabava por dedicar uma grande parte do meu pensamento ao tema. Não conseguia conciliar-me com certas questões. Será que ele escrevia bem? Isso provavelmente não interessava. Melhor do que eu? A julgar pela sinopse que tinha lido, de um grupo acometido por uma desgraça, quase podia dizer que a teria já escrito em criança, pensava. Não seria uma grande merda, esse livro? Ou estava eu enganado, e a coisa era respeitável. Porque é que ele o tinha escrito? Não poderia ter motivações genuínas.
Tudo o que saía do meu computador na altura era uma prosa íntegra, pesada com as verdadeiras ambições. Teria ele escrito o romance para se envolver com a rapariga? Ou seria tudo autêntico? Não, todas essas suposições eram uma parvoíce. Ela simplesmente gostava mais dele. Mas porquê então esta ficção? Do livro, do lançamento, e do escritor, se as coisas eram tão simples assim?
A questão certamente não me largava, e completei essa Primavera em consternação. A estrada que levava à casa dela partia do Jardim Municipal naquela altura, e dali até ao fim, cerca de dois quilómetros e meio a pé, estava para mim delineado um troço condenado à contemplação e à angústia: tinha-me sido vedada a vivência normal daquela artéria da cidade. Ironicamente, se o romance do meu inimigo fora baseado na falsidade e na afectação, tinha em mim iniciado uma reação de efeitos contrários, pois escrevi eu bastante a partir de um movimento real para a abstração fundada num coração partido.
Vinha começando a encontrar uma certa companhia cinéfila, na definição assídua, e ia ao cinema várias vezes por semana. O meu amigo mais próximo, nesta altura, começou a confidenciar comigo sobre um jovem realizador em ascensão – cujas entrevistas com importantes órgãos de comunicação de cinema eu iria mais tarde ler em detalhe – e da forma como este se havia alegadamente insinuado junto da companhia feminina na Cinemateca Portuguesa. Todas as raparigas de quem eu gosto, dizia-me o meu amigo, estão com ele a seguir. Por minha parte, percorria as páginas de redes sociais do indivíduo. Quem era este moço com ideias fortes e portuguesas sobre o desktop cinema, este jovem que eu mais tarde viria a citar como influência em nota de intenção para subsídio? O que é que nele o movia, naquela altura, para aquilo que as publicações masculinas denominavam como o ‘sucesso com o sexo oposto’, e de que forma é que isso agia para com o meu amigo em viés com a integridade da sua obra, que para nós continha então mácula e dissimulação no lugar de idoneidade?
E, o que movia o meu amigo para a timidez, para o ressentimento e para a quietude ao sair do cinema, depois de uma sessão de Cocteau ou de Dulac, a observar o outro sentado ao lado da estudante com que ele trocara mensagens? Jerry Lewis, em “The Total FilmMaker”, indica: Torce sempre pelo filme do teu próximo. Quando o filme do teu colega está em competição, ou é alvo de ponderação por um produtor, faz figas pela sua vitória. Mas como se podiam assim passar as coisas, quando também eu ressentia colegas pelas suas amizades amorosas, e por isso achava os seus filmes patéticos, maus demais, e ria a vê-los sozinho no quarto? No dia da estreia, claro, estaria lá para aplaudir a horripilante curta-metragem, sentado, de mãos rígidas e semblante sério. Era assim que as coisas se passavam, e sobre este modo de ser, nós, colectivamente, estabelecemos um omertà.
Tentei várias vezes aprofundar o conhecimento sobre esta questão através da autoficção, uma espécie de ajuste de contas metatextual: iria a casa dela para poder finalmente ler o livro (ela está com um bebé nos braços, mãe solteira, o pai envia uma pensão de alimentos). É aqui que também poderá cheirar à kinderscheiße que Leon, o protagonista de Afire (2023), identifica numa “Berlin townhouse”.
O texto é muito importante, e é muito frustrante a pouca importância que lhe estão a dar. Leon (Thomas Schubert) não é um homem tímido nem envergonhado, sendo que o vemos várias vezes a declarar com asserção a sua vontade, até ao ponto da inconveniência. A verdade é que tirou uns dias, com o amigo Felix (Langston Uibel), para estar no campo a trabalhar neste texto – e Felix também tem um portfolio para fazer – não vão para estar de papo para o ar. E isto não é um trabalho leviano, não é uma coisa que se possa simplesmente despachar. Despachar é o que Felix parece fazer com o seu portfólio, na cena mais hilariante do grande filme de Petzold, onde decide que, com o tema “água”, irá concretizar o seu trabalho com retratos de pessoas a olhar para o mar (Mas se lhes estás a tirar o retrato, vão estar a olhar para ti, não para o mar, aponta Leon; Certo, mas vão olhar para mim depois de estarem a olhar para o mar, portanto está lá a cena;).
Felix não veio mesmo para trabalhar: assim que se vê na bela casa em clareira florestal, a vinte minutos a pé da vila piroresca na costa, e a quinze da praia, coloca claramente as suas prioridades em dia – afinal, estão a passar uns dias fora: “vens dar um mergulho?” pergunta a Leon todas as manhãs, para a crescente ofensa do segundo. Está, além disto, muito disponível para um romance de Verão, ficando de imediato com o interesse desperto pelo volume com que Nadja (Paula Beer), a anfitriã dos dois, passa as suas noites na casa – e pelo misterioso nadador-salvador que a acompanha.
Nadja que, por sua vez, fica intrigada e interessada pelo pensativo e bonito Leon, escritor, um pouco como ela, licenciada e mestre em literatura europeia – esta parte ainda não saberemos – uma noite, quando Leon acorda, desta vez com os gemidos nocturnos de Felix, pelas paredes, Nadja convida-o a irem passear à praia, para ver as luzes nocturnas. Sentir-se-ia mais segura ao lado dele, insiste. Leon é claro: “O meu trabalho não mo permite.”
Mas que trabalho é este afinal? Quando o editor finalmente chega, a meio-ponto do filme, num Smart ForTwo (se ligarmos ao que dizem sobre o tamanho de carro dos homens, então podemos concluir que estamos perante um indivíduo práctico e descomplexado), e se senta no pequeno gazebo da propriedade, Leon está já bastante transtornado. Levado a um modo de ser frustrado e cauteloso, fruto dos dissabores que tem tido pela casa, por parte de pessoas que parecem estar em contraciclo em relação a ele, a dar importância a coisas muito diferentes, deposita um serviço de chá completo na frente do patrão, que o observa um pouco atrapalhado.
Até agora, tem assistido ao afastamento de Felix, que está muito mais interessado no novo namorado, Devid (Enno Trebs), que Leon pensava por sua vez que era o namorado de Nadja: toda a situação tem sido um desenvolvimento desagradável atrás de outro. Na verdade, os três começaram a pô-lo de parte, depois de tantas recusas – por parte de Leon – para se juntar a eles (para se divertir com eles – podemos até dizer, para “viver com eles”). Ele gosta de Nadja, sim, talvez ela até goste dele de volta. Tem sido uma situação vaga. Mas ele confiou nela, decidiu dar-lhe o romance “Club Sandwich” para ler, coisa que nunca faz, um exercício de confiança e de abertura extremo, e ela disse-lhe que estava uma merda, portanto nunca iria resultar. Quanto a Devid, é simplesmente um otário, e cada vez que convida Leon para alguma coisa este não sabe se tem vontade de rir ou de lhe bater. As férias estão insuportáveis.
Infelizmente, o editor também não parece muito motivado para fazer uma leitura de “Club Sandwich”, e está mais interessado em perguntar a Leon pela casa, pelo pequeno bosque, por Nadja, ou por um jantar a cinco (“Não!” – zanga-se mais tarde Leon com Nadja – “estava combinado irmos à marisqueira só os dois para trabalhar.”); quando Leon espreita para as notas do superior, durante um telefonema deste, só vê cruzes e parágrafos riscados.
Afire é um filme sobre a subjectividade, e além disso, sobre a vida que acontece à nossa frente (e não a nós) e sobre a qual, no limite, desconhecemos o funcionamento [para um double bill interessante, e um “Ar” para o “Fogo” de Afire, além do próprio futuro filme de Petzold, podemos considerar Deep End (1970) de Skolimowski];
Atentemos, por exemplo, no efeito Kulechov da cena na praia onde Felix e Leon conhecem Devid. Na noite anterior, a altas horas da madrugada, Leon viu Devid a sair de casa, nu. Agora está aqui, a trabalhar na sua torre de vigia costeira. Felix está entusiasmado com isto, e parte para o cumprimentar, apesar da hesitância forte de Leon. Sobe a torre e apresenta-se, senta-se e falam. Cortamos de volta para Leon, deitado na toalha de praia a olhar. E como é com ele que estamos o filme inteiro, é com a perspectiva dele que voltamos a olhar para a torre e vemos com a sensação de embaraço, de inconveniência, de comicidade e de despropósito o encontro entre estes dois homens que não tinham nada que se encontrar, provavelmente até a rir-se de Leon o ter visto (vemos de facto os dois a rirem-se); é entrópico, é “muita confusão”. Os envolvimentos afectivos dos outros são uma coisa difícil de perceber.
O que acontece realmente é que os dois se aproximam, e na brilhante cena do primeiro almoço com todos, em que Devid conta uma piada com uma preparação gigante, uma narrativa enorme sobre uma ex-mulher, umas férias tropicais, e um carregador de malas árabe, Nadja se está a rir antecipadamente por duas razões: primeiro, porque conhece já o desfecho da anedota, que já terá ouvido Devid contar. Segundo, porque se apercebe já do interesse deste para Felix, do interesse de Felix por este e, enfim, da química entre os dois: toda esta realidade é por absoluto invisível para Leon.
Cortamos sempre de volta para ele, cada vez mais aborrecido e irritado. Quando a piada termina, em semelhança ao velho gag do snooker em que pedimos ao nosso colega para cheirar o giz, com Devid a indicar a Felix que lhe cheire a camisola, empestada com um cheiro de anos (the gay spray) e aproveitando para o beijar, Leon fica parvo, não percebe nada, e pior, acha que ele é mesmo um engraçadinho da pior espécie, sem limite para as gracinhas de que será capaz para continuar a seduzir Nadja.
Que, na noite em que o sexo entre Felix e Devid acorda a casa, Leon reaja com a mais pura surpresa (“Felix??”) depois de numerosas vinhetas dos dois em tronco nu a fazer bricolage pelo terreno, é hilariante, mas não menos preocupante. Este homem está completamente “noutra”. O que Leon acha que as coisas são e o que elas são – são duas coisas diferentes, e estes equívocos ao longo de todo o filme culminam na arena minada que a chegada do editor propõe, pois na tal refeição com todos que este consente já com um certo desespero (o que é suposto fazer, não jantar com o homem de quem a aprovação do seu romance depende?), todos aprendem que Nadja é especializada em literatura europeia, candidata a bolsa de doutoramento, recitando para todos um poema, – Felix pede inclusive bis. Isto interessa sobremaneira o editor, e Leon parece confrontar-se com o impensável: até este homem – uma facada à Brutus – parece mais interessado em outra coisa – e em particular em Nadja – uma coisa especialmente no regime da vida e do estar presente – do que em finalizar a análise do seu romance.
O editor, Helmut, parece sofrer um ataque cardíaco, o que coloca um intervalo na situação (Leon não é capaz de o conduzir para o hospital, porque não tem carta) – mas a ofensa resume-se mais tarde, no recobro, quando este parece condescendente e esquivo, mais uma vez, tranquilizando Leon com a passagem do encargo de edição para uma colega sua. Para o romancista, esta é a gota de água: os dois estão interessados em ser um casalinho, o dono de editora e a doutoranda poetisa, uma traição final. É Nadja que o alerta da verdade da situação, a verdade médica, a verdade também, que Helmut simplesmente tem coisas mais importantes em que pensar. Este choque é importante para Leon, acordando-o para a vida, reunindo-lhe a coragem necessária para dizer a Nadja que está apaixonado por ela. Infelizmente, com este acto flamejante coincidem más notícias, e os dois jovens namorados, Devid e Felix, não sobrevivem aos incêndios que pululavam pela zona ao longo de todo o filme.
Na morgue, Leon não consegue abraçar Nadja. Isto confessa-o, na sua escrita: não consegue partilhar do luto dela, aceder ao luto dela. Está no seu, privado, e ao olhar para os corpos, pensa em imagens, e mais tarde em ideias. No final, a forma como as coisas aconteceram dar-lhe-á um livro muito superior. Mas esta história não é sobre isso. É difícil interpretar o olhar que os dois trocam no fim. Ela a passear na varanda, ele escondido na sombra de um tronco.
Os primeiros parágrafos deste artigo fazem parte de um exercício de ficção chamado “Sandes de Ovo”, que aguarda aprovação por parte de editora;