Historicamente, o cinema de género é o inquestionável parente pobre da cinematografia nacional. Se esta realidade se explica, em parte, pela modéstia de meios que sempre caracterizou a produção portuguesa, a verdade é que tal não chega para justificar por inteiro a problemática. O facto evidente é que, além da crónica falta de dinheiro, a parca produção de género é sobretudo produto de uma falta de interesse da generalidade do meio cinematográfico português que, nas réplicas da geração de 60 e no pós-25 de Abril, preteriu estes códigos em favor de tipologias ligadas sobretudo ao realismo social e às novas vagas europeias; um cinema não necessariamente “político”, mas certamente “interventivo”, e fortemente desconfiado de tudo o que pudesse ser interpretado como uma cedência da arte pura, ars gratia artis, ao comércio.
Esta interpretação não será consensual junto de produtores culturais portugueses, uma boa parte dos quais rejeitam à partida qualquer noção de “cinema de género” enquanto conceito. Afinal, quem determina o que é sequer isso de “género”? Um filme de Pedro Costa ou de Abbas Kiarostami não obedece, também, a fórmulas e princípios-base específicos, tão ou mais bem definidos que os de uma produção da Marvel? Esta linha de argumentário, que honestamente é mais semântica do que outra coisa, reúne, em todo o caso, apoio suficiente para merecer contraditório antes de prosseguir. Clarifique-se então: aqui se define “cinema de género” como uma proposta que obedece a um imaginário específico, de convenções pré-estabelecidas e elementos estilísticos e temáticos comuns, sem, contudo, fugir à lógica normativa do cinema narrativo clássico.
A inexistência virtual do(s) género(s) na história da produção nacional — com a notável exceção da brejeirice deprimente que se intitula de “comédia à portuguesa” — é um dado a lamentar; por outro lado, torna qualquer esforço contemporâneo nesse sentido num evento a destacar, alvo de redobrada atenção pelo que representa de potencial ruptura e novidade no panorama atual. Nos últimos anos, o aumento no caudal de produção tem também correspondido a um (tímido) crescimento dessas propostas: o início de 2024 assistiu à estreia de A Semente do Mal, segunda longa-metragem de Gabriel Abrantes, uma história clássica de bruxas e casas assombradas que conseguiu superar a cifra dos 100 mil euros de bilheteira; mais “do sistema”, o recente Alma Viva, de Cristèle Alves Meira, deixa fugir a mão para uma espécie de terror folclórico numa das suas sequências-chave; e o que dizer da animação portuguesa, rotineiramente premiada lá fora (Ice Merchants, Percebes) e que até já longas-metragens vai produzindo (Nayola, Os Demónios do Meu Avô).
A estes exemplos do passado recente, acrescentamos um outro objeto de natureza curiosa: um western açoriano, ambientado em São Miguel e, sobretudo, no imaginário fílmico dos spaghettis de Sergio Leone. Curta-metragem da autoria de Francisco Lacerda, Cemitério Vermelho teve a sua estreia em 2022 na Competição Nacional do Indielisboa. No início deste ano, passou a estar disponível na plataforma de streaming Filmtwist pela mão do MotelX, entidade e festival que ainda vai sendo dos principais responsáveis por incubar e fomentar a criação de cinema de género em Portugal, do terror ao fantástico.
Dos Dólares a Macedo
Há claramente uma dimensão irónica em Cemitério Vermelho. Desde os momentos iniciais, quando “Era uma vez nos Açores…” surge escarrapachado no ecrã, que entendemos que o exercício que vamos ver não é para ser inteiramente levado a sério. A pequena história do filme oferece-nos a mais básica fórmula do spaghetti western: um tesouro escondido, um cemitério, dois foras-da-lei e um impasse mexicano (aqui açoreano). A própria caracterização de José “Caloteiro” (Francisco Afonso Lopes) e Roland (Thomas Aske Berg) nem é tão inspirada como é simplesmente levantada diretamente de Tuco e Blondie, esses dois gloriosos arquétipos de O Bom, o Mau e o Vilão. Mais Leone que isto é impossível.
Este primeiro baque facilmente poderia sugerir um filme-paródia desses cowboys italianos, mais sketch comedy do que propriamente cinema. A principal qualidade de Cemitério Vermelho é, pois, não resvalar para a sátira — há aqui uma atenção ao detalhe, uma vontade clara de recriar ao pormenor o aspecto e a textura desses filmes, que cedo compreendermos só ser possível se os seus criadores tiverem por eles grande reverência.
Está aqui tudo: a música faux-Morricone, o grão artificial a remeter para as películas gastas de 35mm, os snap zooms e panorâmicas, os diálogos e a narrativa óbvia – “Caloteiro” deixou Roland para morrer, este agora surge-lhe como um espectro de vingança. Tem até o cuidado de incluir os erros: as famosas dobragens a posteriori, método de gravar som comum do cinema italiano que persistiu quase até ao século XXI, estão aqui também presentes, o que tem também o duplo benefício de ajudar a justificar a nacionalidade escandinava de um dos atores (bem como, se os leitores açorianos me permitem, o difícil sotaque micaelense).
Neste capítulo, há também que realçar uma outra influência, não tão óbvia, talvez até não-intencional: Cemitério Vermelho deve qualquer coisa ao cinema de António de Macedo, o seu parente direto no passado do cinema português. Menos interessado no realismo do que os seus contemporâneos do Novo Cinema, a história de Macedo anda de mão dada com a do cinema de género português: escorraçado, desvalorizado, durante anos impedido de filmar. No entanto, a história não se apaga: Macedo foi o primeiro cineasta português em competição no Festival de Cannes — justamente com um proto-western, A Promessa, em 1973 (chapada de luva-branca à teoria elitista dos “filmes para Paris”), e o seu cinema, interessado nas questões esotéricas, místicas e profundamente anti-naturalista, vai sendo aos poucos redescoberto por uma nova geração de cineastas portugueses, interessados em continuar a empreitada.
A homenagem pela homenagem
Aqui chegados, há ainda uma pergunta a fazer: qual o propósito de fazer um filme assim? Infelizmente, é aqui que Cemitério Vermelho menos respostas oferece. Ainda que seja claro que se trata de um projecto-paixão por parte dos envolvidos (de outro modo o esforço claramente em oferta não seria justificado), há uma falha fatal no design deste engenho: não foi concebido como algo para lá da mera homenagem, um manancial de referências e gestos ao passado que não coalesce numa ideia genuinamente sólida por si só.
Dito de outro modo: seria possível gostar-se de Cemitério Vermelho sem se ter qualquer referência dos códigos do género? Parece-me francamente difícil. Se acima escrevi que a reverência da curta-metragem ao género é a sua maior qualidade, também se pode argumentar que esse é também o seu passo em falso. De facto, pertence menos a um “imaginário fílmico” do que a um “imaginário referencial”, um exercício de imitação sem grande lógica para lá da imitação em si.
É uma pena. Não que uma modesta curta-metragem fosse mudar o paradigma da produção portuguesa, de qualquer modo (e, deve ser frisado, o cenário é tão depauperado que qualquer esforço nesse sentido é bem-vindo), mas porque Cemitério Vermelho parece não reconhecer o verdadeiro potencial do cinema de género — assim como algumas elites intelectuais também o ignoram. É que os spaghetti westerns, tal como os giallo e outro cinema dos “Anos de Chumbo” (ou, para fugirmos do contexto italiano, os grandes autores de género americanos, como Carpenter, Romero e, porque não dizê-lo, Macedo) são também, afinal, armas de intervenção social e política, muitas vezes mais eficazes que o próprio realismo, já que conseguem dissimular as suas mensagens e ideologias sob o manto do entretenimento, fazendo da arte popular do cinema um verdadeiro Cavalo de Tróia a favor da mudança.
Ironicamente, o resumo dos esforços de Cemitério Vermelho pode ser feito com o seu final: depois de o impasse dar lugar a uma luta e sangrento desfecho (um clímax que estaria totalmente em casa nos filmes de Castellari ou Corbucci, mais até do que no cinema de Leone), os créditos finais do filme rolam ao som de “Segredos” uma música de José Pinhal. Um cantor há muito morto, recuperado em anos recentes por um movimento pretensamente “de homenagem”, mas que em grande medida não passa de uma anedota interna para uma demografia hipster/urbana, nivelando a cultura popular e o camp a um mero filtro de Instagram. Remova-se o filtro, e a realidade desilude.
Filme disponível em filmtwist.pt – o primeiro serviço de streaming em Portugal dedicado ao cinema fantástico e de culto.