Camões, de Leitão de Barros – Filme partindo-se

Eduardo MagalhãesJunho 10, 2024

Séculos depois, ainda muito pouco se sabe sobre a vida de Luís Vaz de Camões, poeta português e homem da Renascença. Figura paradigmática do imaginário nacional, teve a sua lenda estabelecida em virtude do talento que espalhou por toda a parte e através das inúmeras narrativas populares que foram surgindo sobre a sua vida. O autor de grandes sonetos convive na imagem do “trinca-fortes”, brigão namoradeiro que viajou e serviu em inúmeras partes do mundo.

Na memória coletiva, cristalizaram-se episódios que provavelmente nunca sucederam, desde a leitura de “Os Lusíadas” no paço de Sintra a D. Sebastião ao salvamento do manuscrito da epopeia no seguimento de um naufrágio. Conforme a lenda, assim homem e obra foram apropriados por diferentes regimes políticos. De um mesmo folclore imprimiram-se insígnias de patriotismo e mudança política. Em qualquer empresa, comemoração ou manifesto lá se encontrava a figura do poeta… Não há mal que lhe não venha

Realizado por Leitão de Barros e escrito pelo próprio e Afonso Lopes Vieira, “Camões” poderia ser outro elemento, mais ou menos significativo, do rol de retratos feitos ao homem cujo destino se confunde com o de Portugal. Sendo evidente a presença de alguns erros técnicos, algum diálogo bacoco, o filme agrupa factos verídicos com pertences dessa mitologia popular, que apesar de baralharem a narrativa, guardam o mérito de um diálogo inconsciente com a História.

Nem mesmo os rótulos de propaganda nacionalista poderão escamotear as semelhanças entre a corte do piedoso D. João III, repleta de pequena intriga, mesureiros em barda, devoção eclesiástica ou corrupção amiguinha, e a Lisboa de Oliveira Salazar? Não haverá uma linha de continuidade entre as referências à Inquisição, por mais benévolas que sejam, e o crivo da censura do Estado Novo? Coincidências ou não, existem demasiados elementos neste filme de 1946, que fazem dele curioso objeto de revisitação.

À semelhança do seu “Inês de Castro”, lançado dois anos antes, Leitão de Barros abre com música deliberadamente épica, com o genérico inscrito em folhas na prensa de uma oficina quinhentista. “Camões” contrasta com o filme da rainha depois de morta pela recriação histórica mais suave, menos solene. A música é bússola preciosa para o que vemos. O tema épico, o tema renascentista, o leitmotiv de Beatriz, ou os poemas tornados canções aparecem de forma orgânica face aos eventos filmados, esquivando-se, ainda que por pouco, do lamento de António Ferro então diretor do Secretariado Nacional de Propaganda, que apontava a cantiguinha metida a martelo como um dos males do cinema português.

O prólogo coimbrão mostra-nos o escolar Luís Vaz que, como referido, assenta no molde do imaginário popular, a que António Vilar empresta uma dose certa de carisma na sua performance. A cada mulher que passa, burguesa, lavadeira ou prima fidalga, uma nova musa, nova trova, dando azo aos inevitáveis: “Descalça vai para a fonte”, “Está o lascivo e doce passarinho”, ou “Não sei se me engana Helena”. Leitão de Barros está mais confortável nesta primeira parte, enjeitando o ritmo algo atabalhoado das películas de cariz rural em que o cinema da época era prolífico. Portanto, reina um humor bucólico folgado nas desventuras do jovem poeta. Igualmente eficaz é a introdução de Andrade de Caminha (Paiva Raposo), venenoso adversário de Camões que, já aqui, entre meros motes de namoros inconsequentes, se apresenta antagonista mesquinho.

Após Coimbra, Lisboa capital do império. A estrutura episódica do filme assim o exige. Aliás, Lisboa, Ribatejo, Lisboa, África, Lisboa, Oriente, África, Lisboa, muitas são as paragens do filme. Lamentavelmente, só no paço real e arredores da capital temos vislumbre de espaço pensado, tudo o resto é matéria de segundos ou minutos apressados. Se a viagem é cruz constante do poeta, não temos tempo para a sentir, mas mais sobre isto adiante.

Com a chegada a Lisboa, temos nova aparição de Camões, o satírico em vez do lírico, o obreiro do “auto d’El-Rei Seleuco” e dos versos sobre o mote: “Perdigão perdeu a pena, não há mal que lhe não venha”. Se a trama poderia seguir a linha do pensamento camoniano, o argumento de Lopes Vieira vira a página com a repetição de temas anteriores. Corporiza nas damas da corte a obra poética. Catarina de Ataíde é a Natércia (Alma minha gentil). A Infanta D. Maria é fonte de muitas inspirações.

A dado momento, esta insistência na materialização dos versos nas figuras femininas obstaculiza qualquer hipótese de personagem, sendo o melhor exemplo a própria Catarina que acaba por desaparecer do filme sem se perceber a falta dela. Em sentido contrário, fruto de uma grande performance de Eunice Muñoz, temos em Beatriz, filha do Regedor das Justiças, porventura a única personagem bem conseguida do filme. Beatriz é a mulher não cantada, sem vestígio da beleza que fascina o poeta, apesar de nutrir uma paixão silenciosa por este. Os olhos truculentos adivinham o próximo plano. As diferentes toucas nos cabelos acentuam a aura de anjo mau, por vezes complementada nas vestes carregadas ou mesmo quase masculinas. Faz da rejeição contínua por parte de Camões ânimo para a sua má fortuna.

Notar que a escolha do elenco está longe de ser inocente e dá um tópico de discussão interessante. Os atores com formação de Conservatório (Muñoz, Carmen Dolores, João Villaret) surgem nos papéis de fidalguia e nobreza, enquanto atores mais experimentados no teatro de revista e índole popular (António Silva, Vasco Santana, Costinha) desempenham pequenas participações cruciais como plebeus ou humildes funcionários. Logo, uma vez que a Lisboa que Barros compõe está centrada na intriga palaciana, temos diferentes modos e demonstrações do pequeno poder.

Os fidalgos conspiradores contra a ousadia de Camões agem na penumbra, ao passo que António Silva como cabo dos Meirinhos não hesita em exibir o contentamento que a sua pequena jurisdição lhe dá: “Camões? Desta vez não me escapas meu finório. Em nome d’El-Rei estás preso. Vais para a cadeia fazer versos a ver se saem certos. Toca a andar! E de gorgeira à fidalga, pois então…”. Acresce a isto, a figura cobarde e ridícula de Gaspar Borges (Costinha), criado passe alvo da fúria do poeta. Estamos muito longe da tradicional imagem do povo humilde e trabalhador do cinema português à época.

Fora deste cíclico ambiente funesto, temos as aspirações do desiludido Camões. Destaco a cena em Ceuta, que malogrado a execução técnica, em muito enriquece o filme. Começa com planos da fortificação do Norte de África, a bandeira imperial, seguindo para o plano, espécie de cópia de um quadro menor de Columbano, do poeta à guitarra, cantando:

“A dor que a minha alma sente
Não na saiba toda a gente!

Anda no peito escondida,
Dentro n’alma sepultada;
De mim só seja chorada,
De ninguém seja sentida.
Ou me mate ou me dê vida,
Ou viva triste ou contente,
Não na saiba toda a gente.
A dor que a minha alma sente
Não na saiba toda a gente!”

À medida que canta cortamos primeiramente para o vigia a adormecer e, de seguida, para os mouros que avançam. Morto a sentinela, segue-se um brusco confronto entre as partes, rematando com a vitória portuguesa. No rescaldo do embate, Camões apercebe-se do pelouro com a bandeira derrubada, dirigindo-se ao alto da fortificação para a compor. Se a cena se dirigia para a exaltação patriótica um tiro de um inimigo ainda consciente interrompe-a, furtando a vista a um dos olhos de Camões. Da aparente propaganda nacionalista saltamos para o prenúncio do fim, aviso da tragédia que se aproxima.

No final do filme regressamos a Marrocos para o desenlace da Batalha de Alcácer-Quibir mais bem découpada, à qual se justapõem os lamentos camonianos. É, pois, intrigante que conscientemente ou inconscientemente, os cineastas envolvidos tenham optado por dar atenção ao norte de África, berço e túmulo do império. O que distingue o poeta regressado de Ceuta, triste e cansado, daquele que em furiosa declamação apresenta-se ao jovem D. Sebastião, última esperança de um Portugal libertado das amarras da mesquinhez, do gosto da cobiça e de uma austera e vil tristeza. Terá tido o poeta nos anos experimentados no Oriente consciência do sonambulismo ao qual Portugal se prostrou?

A sina lusa estava e estará associada à viagem. Haverá melhor exemplo que o próprio cinema português? Sempre focado na viagem, quer seja a ida das tias do Vasco à capital, os retiros de Ema no Vesúvio, ou as deambulações de Ventura? Independentemente da paisagem, seja ela o Porto Santo de Brum do Canto, Trás-os-Montes de Cordeiro e Reis, ou o Oriente por Rocha, a cruz dos portugueses é a de Camões, sair e regressar em peregrinação constante. Ao recusar tal condição, redundará em sequestro de um materialismo hediondo, seja ela a escravatura, a exploração, a inveja, entre outros.

Mais que a glória cantada na epopeia, a história de Camões é feita de falhanços e frustrações. Já velho, pobre e só, terá assistido à falência de tudo o que cantou, tendo morrido a 1580, ano zero da História de Portugal. Invocando Fernando Pessoa, o que se seguiu, os Filipes, a dinastia de Bragança, a República, “tudo é sono, não são a nossa história, senão o que representam a ausência dela”. A isto poderíamos facilmente acrescentar o Estado Novo, que Leitão de Barros irremediavelmente cumprimenta na conclusão do seu filme ao apostar na justaposição do rosto de Camões com as diferentes bandeiras e datas históricas de Portugal, incluindo 1940, data da Exposição do Mundo Português, acontecimento marcante do regime salazarista. Mais que propaganda, vejo este gesto como uma palmadinha nas costas entre o realizador e António Lopes Ribeiro, produtor do filme, uma vez que Salazar nunca terá sido muito dado a cinema.

Todavia, ver “Camões” não deixa de ser desafiante no bom sentido. Penso não ser desajustado ver na figura de Andrade de Caminha, inimigo de Camões e incitador dos males que afligiram o poeta, um exercício de autocrítica por parte do realizador. Caminha é o “pobre mesureiro sempre em cata da esmola” a quem Camões não consegue suportar tanto ódio, preferindo o desprezo. Com qual das duas figuras se identifica o realizador, com o servil obediente da corte ou o furioso inconformado? Lança-se o repto: e nós? Seremos descendentes de Camões ou deste Caminha que o filme apresenta? Estaremos prontos para rasgar o véu do fatalismo, romper o servilismo e abandonar o nevoeiro messiânico? “Camões” prefere não responder.

 

Eduardo Magalhães