Blossoms Shanghai: ainda estamos disponíveis para amar Wong Kar-wai?

Dez anos é muito tempo. Menos, é certo, do que os dez mil que profetizava a password do voicemail de Takeshi Kaneshiro, selo que em Chungking Express (1994) guardava todos os amores não correspondidos. Suficiente, ainda assim, para tornar Wong Kar-wai num mistério, um “desaparecido em combate” que, durante mais de uma década, viveu em sonhos de celuloide, nos resquícios de um cinema distante, uma Hong Kong acometida pela incerteza sobre o futuro e a ennui do “fim da história” — tempo passado e, paradoxalmente, intensamente presente sempre que o revisitamos na nossa própria solidão.

As obras-primas são matéria de lenda para cinéfilos: ao já referido Chungking acrescenta-se o seu negativo, Anjos Caídos (1995), a dolorosamente bela história de amor e regeneração de Felizes Juntos (1997), o ardor das paixões perdidas em 2046 (2004). O critério de quem escreve deixa de fora Disponível para Amar (2000), para muitos o seu cume; pessoalmente nunca fiquei completamente rendido a esta obra. Em todo o caso, fica feito o ponto: a oeuvre de Kar-wai fala por si, e coloca-o no plano rarefeito daqueles nomes que se podem digladiar pelo título de “maior cineasta vivo”.

Porque Wong está vivo. Chegámos a duvidar, mas está. A prova de vida deu-se no passado sábado, em Lisboa: no grande ecrã do Nimas, assistimos aos dois primeiros episódios de Blossoms Shanghai, a série na qual trabalhou sob secretismo desde O Grande Mestre (2013), o seu último filme, e que demorou três anos a rodar. Terá sido possivelmente a primeira vez que o Ocidente pôde ver o resultado, adaptado do romance Blossoms, de Jin Yucheng, que estreou em 2023 na China. Garantia dada pela Filmin, que organizou a sessão e que, ao longo das próximas semanas distribuirá na sua plataforma de streaming a série — os cinco primeiros episódios saem já esta terça-feira — em Portugal e Espanha, os dois primeiros países deste lado do globo a ter o privilégio.

Como é que (re)encontramos, então, Wong Kar-wai? A narrativa transporta-nos para Xangai entre 1987 e 1993, mostrando-nos de forma elíptica um mundo de negócios e ações em bolsa no período da abertura ao Ocidente e do “socialismo de mercado” de Deng Xiaoping, na antecâmara da explosão económica da China contemporânea. Somos guiados por Ah Bao (Hu Ge), um jovem ambicioso que chega à cidade para aprender com o seu tio Ye (You Benchang) a art of the deal, transformando-se, quando a série começa, num dos grandes fazedores de acontecimentos da cidade.

O salto, que acontece nos minutos iniciais do primeiro episódio, é um tanto abrupto, consumado no tempo que o protagonista demora a vestir um fato, e não é claro a esta distância se o resto da série irá desenvolverá melhor a sua backstory. De um modo geral, as primeiras horas de Blossoms são bastante expositivas, pastosas na introdução de enredos e personagens, pelo que se espera que os 30 episódios da série (todos realizados por Kar-wai) tenham tempo para se moldar em algo mais próximo da sensibilidade a que estamos habituados do cineasta.

Essa sensibilidade está aqui presente sobretudo no campo estilístico: a voz-off enquanto presença constante, a paleta de cores garridas, a pintar as memórias de Xangai de luzes douradas, vermelhas e néon, o simbolismo das portas, dos relógios, dos números de quartos de hotel, os slow-motions característicos… há, contudo, uma invariável sensação de checklist, como se estivéssemos a assistir a uma imitação. Sinalização de que sim, estamos a ver um novo projeto de Wong Kar-wai e sim, agora é em digital e já não está Christopher Doyle na direção de fotografia — agora é Peter Pau Tak-Hai, um talentoso veterano, sem dúvida, mas cuja sensibilidade (sobretudo espelhada no seu trabalho com Ang Lee) é outra. Os anos passam e certas coisas nunca mudam… Mas mudam, obviamente, e o efeito, pelo menos neste primeiro impacto, é de uma espécie de “Kar-wai de segunda classe”, para não dizer outra coisa.

A espaços, algo a fazer lembrar o magnetismo do seu cinema lá vai surgindo. Está ali, na caracterização das personagens — é difícil não comparar os maneirismos de Hu Ge a Tony Leung, e a misteriosa Madame Li, de Xin Zhilei (que nesta introdução tem ainda pouco para fazer), mostra potencial de se afirmar como um ponto alto da série, algures entre o equilíbrio de Gong Li e a sedução de Zhang Ziyi em 2046. Está ali, também, no solipsismo da narração e em pequenos momentos do texto, como a explicação do tio Ye sobre quantas carteiras um homem de negócios deve ter, ou a asserção de Ah Bao, no início do primeiro episódio, de não saber se a vida que leva “é um sonho, ou uma realidade da qual não consigo acordar”.

Por outro lado, é difícil não reconhecer as claras fontes ocidentais de onde Wong parece ter bebido para esta adaptação. Há mais do que um gesto na direção de Baz Luhrmann, particularmente do seu Grande Gatsby, e uma clara influência da prestige TV americana — sobretudo da série da HBO Succession, cujas semelhanças (desde logo no genérico inicial) ultrapassam largamente os limites da coincidência. Acima de tudo, é impossível não estarmos constantemente a pensar nos filmes, naquilo que conhecemos de Wong Kar-wai e no desconhecido desta nova direção, mais formatada e pensada para o consumo interno do mercado chinês, depois de uma carreira no cinema demasiado preocupada, no entender de alguns, com a aclamação dos festivais europeus.

Pese embora a trepidação das primeiras impressões, pode ser que o desenrolar de Blossoms Shanghai permita à série erguer-se pelo seu próprio pé — não divorciada do que amámos em Chungking Express ou Anjos Caídos, mas evidenciando a evolução dessa linguagem para um novo tempo. Há laivos de algum potencial, apesar de tudo: o uso recorrente de imagens documentais e de arquivo é uma novidade, situando explicitamente num passado concreto, histórico, a ação da narrativa. Em Blossoms, filmam-se as convulsões económicas e políticas que fizeram da China o que é hoje; curiosamente (outra estreia para o cineasta), filma-se também um período que é já contemporâneo do seu cinema. Um tempo em que, nas ruas e mercados de Hong Kong, Wong Kar-wai filmava Faye Wong ao som de California Dreamin’. E nós apaixonávamo-nos por ela.

 

André Filipe Antunes