Big Time, filme-concerto-performance de Chris Blum, estreado em 1988, e que tem como figura medular Tom Waits, é uma raridade cinematográfica. Existindo quase exclusivamente em formato película 35mm – com algumas edições em VHS, mas nunca lançado em DVD –, a sua exibição esta semana no Passos Manuel, no Porto, pela mão da Badlands, constituiu uma experiência possivelmente irrepetível.
Foi um deleite presenciar os efeitos do magnetismo do cinema, ainda vivo e de boa saúde; um feitiço intensificado por se tratar de um registo musical particularmente sedutor e delirante. Ainda que a sala de cinema imponha alguma contenção e exija silêncio, foi impossível dissimular as contagiantes gargalhadas soltas de quando em quando, o vibrar dos corpos ao som da música, seja ele um envergonhado bater do tempo ou um enlevado balançar da cabeça, e até o cantarolar ousado, a duas vozes, de “and it´s time, time, time”.
Um fervor que não teria sido manifestado se a atuação de Tom Waits fosse outra que não esta: por meio de um filme enlouquecido e visceral – como se o caráter também ele enlouquecido e visceral de Waits não bastasse. A duplicação do pandemónio performativo enfebrece o espectador.
A quimera do entretenimento – sonho acordado e adormecido –, a cidade bulindo oportunidades, o álcool que tudo promete e que com tudo acaba, as mulheres que são o amor: múltiplos mundos, habitados por um só homem que é vários homens sobrevindos, encadeados numa (não) narrativa surreal. Naturalmente, vamos interiorizando a irrelevância de não nos sabermos situar no meio de todo o caos cromático e sonoro – os jogos de luzes, de efeitos e de cenários, teatralmente compostos (as mudanças de atos são deliciosas), juntamente com os sons produzidos por elementos urbanos imaginados, atingem-nos como raios atordoantes e ensurdecedores. A desorientação é essencial para que nos deixemos absorver totalmente pela presença do artista.
Tom Waits é um ser ramificado, performatiza(n)do num tempo e espaço muito particulares e dos quais é o habitante por excelência – a sua performance é a edificação do seu imaginário, ou o do seu alter ego Frank O´Brien. Esta é uma personagem nascida na música Frank´s Wild Years, do álbum Swordfishtrombones, crescida na peça e álbum homónimos posteriores. Chega-nos maturada em Big Time, com todas estas camadas de pensamento e criação (inter)artísticas implícitas.
As canções – que tendo sido já gravadas em álbuns anteriores ao filme, ganham uma nova vida – poderão ser o motivo primordial que conduz alguém fã ou curioso a espreitar este trabalho. No entanto, são o intérprete de fisicalidade violenta, o boémio de humor cáustico, ou o M.C. de cabaret que nos fazem embasbacar diante do semblante estranhíssimo de Waits, que não se deixa ficar pelo espetáculo musical. A sua aparência – os icónicos cinco relógios, os óculos de sol, as expressões e movimentações corporais desenfreadas, com suor possante e pés retorcidos – é indubitavelmente coincidente com a sua excentricidade artística assombrosa, manifesta na fluidez e desembaraço rítmicos, na versatilidade emocional que tanto transparece desolação melancólica como, no momento a seguir, cinismo desencantado e provocatório.
A dimensão meta – um Tom Waits porteiro que nos permite, diversas vezes, a entrada para uma sala de espetáculos onde é ele próprio quem ocupa o palco; as palmas e os assobios que ouvimos de um público interlocutor que, nunca visto, apenas cabe especular que sejamos nós próprios – não é um estratagema para simular proximidade. É, sim, uma inserção de realidades alucinantes que (co)movem e arrepiam pela ferocidade e disrupção, e fazem deste filme uma viagem verdadeiramente artística.