Por onde começar com esta Barbie, com toda a sua multidimensionalidade. É mesmo essa a palavra. A maior metáfora é que Barbie, o filme, representa bem Barbie, a boneca, uma máquina industrial e comercial feroz, verdadeira trend setter, que se transformou num dos maiores eventos de marketing cinematográfico de sempre. O outro, Oppenheimer, ajudou ao fenómeno de rede social que está a esmagar as bilheteiras dos cinemas um pouco por todo o Mundo, e Portugal não é excepção.
Para quem julgava que o filme de Greta Gerwig se tratava apenas de uma comédia de entretenimento hiperestilizada desengane-se. Gerwig criou um verdadeiro manifesto feminista e nunca o esconde (com excepção do marketing que lhe foi feito, aí escondeu) ao longo das suas duas horas. Em Barbieland, a terra imaginária onde vivem as Barbies, existe um matriarcado onde todas elas vivem em harmonia e felicidade eterna, onde a presidente é uma mulher negra, onde o tribunal constitucional é composto unicamente por mulheres, e onde os Kens se limitam a praia. Barbieland é apresentada como um mundo perfeito, até ao dia em que a auto-intitulada Barbie Estereótipo, Margot Robbie, começa a ganhar consciência sobre si própria e, com isso, pensamentos sobre a morte e… celulite. Ao ter que ir com Ken ao mundo real para solucionar a situação deparam-se com o patriarcado, a empresa criadora da Barbie, Mattel, gerida unicamente por homens e a hipocrisia de um Mundo onde afinal a Barbie não empoderou as mulheres.
A nível de subtexto, que é na verdade o seu texto principal, Barbie é agenda política e empresarial pura promovida pela própria Mattel Films. A ilusão autoinfligida pela Mattel de que a boneca Barbie tem como objectivo empoderar as mulheres é questionada, dirigindo-se, de barato, ao facto de que o ideal de beleza Barbie fez mais danos do que benesses ao movimento “feminista”, algo que é aceite actualmente de forma mais ou menos comum. A Barbie, e em particular a estereotipada loira e esguia, representa um ideal de perfeição “impossível” de alcançar (algo incansavelmente mencionado na película), mas acaba por ser ela a salvar Barbieland e acaba por ser ela o ídolo da humana interpretada por America Ferrera (propositadamente a actriz mais conhecida por Ugly Betty?) que é motor do movimento feminista que salva o filme.
Eis o ponto: a mensagem feminista e anticapitalista de Barbie é uma contradição, e a maior contradição é que o filme esteja a ser interpretado enquanto epíteto do feminismo e aceite como tal quase sem questionar. Ao mesmo tempo que critica o capitalismo da Mattel que apenas quer vender Barbies tirando proveito das “modas” sociais, é o próprio filme um produto de marketing capitalista que invadiu a internet sem dó nem piedade. Ao mesmo tempo que critica o patriarcado, faz da Barbie Estereotipada a heroína que espalha a mensagem de empoderamento. Ao mesmo tempo que critica a ditadura da beleza perfeita, empodera de nostalgia quem com ela sofreu. Custa ver essa hipocrisia ser aplaudida com números recorde, mas felizmente Barbie não é só isto.
Quando se coloca de lado todo o subtexto político e etecetera e tal é que Barbie, o filme, verdadeiramente brilha. A originalidade é inegável, incluindo a forma como a “mensagem” é passada. A produção é francamente deliciosa e o humor, visto de forma superficial e sem aprofundar duplos sentidos, tem alguns momentos a roçar o brilhantismo. E eis mais uma ironia do destino: é Ryan Gosling, e o seu Ken, quem rouba o protagonismo. É estapafúrdio dizer que esta é a melhor interpretação da carreira de Gosling, mas o facto é que se alguém algum dia conseguiu entregar exactamente aquilo que se pretendia de uma personagem foi ele. Ken é um idiota, um homem ridículo que descobre as maravilhas do patriarcado, cavalos e cerveja, procurando conquistar o protagonismo e respeito que, a seu ver, nunca teve em Barbieland. O resultado são alguns momentos ridículos e hilariantes, por vezes até Monty Pythonescos, à volta das fúteis lutas internas de um homem, também ele, estereotipado. Na verdade, Barbie, o filme, não é mais sobre Barbie, a personagem, do que é sobre Ken e o seu papel secundário que se transforma em vilão protagonista. O filme está tão preocupado com a complexidade do seu subtexto, com todas as suas Barbies e Kens (afinal onde está a identidade única de cada um de nós?), que o melhor acaba por ser precisamente o character development do seu personagem masculino, o seu cenário e as suas coreografias e músicas. Enfim, assim é Barbie, um produto original repleto de contradições salvas por comédia elementar e um rosa berrante que, quando brilha, brilha a sério. Um verdadeiro fever dream que, apesar das suas falhas, parece conseguir sempre sair por cima.