Baby Invasion (2024), de Harmony Korine: Isto não é um filme?

Laura MendesAbril 11, 2025

Baby Invasion nasce com recurso a um testemunho introdutório em primeira pessoa – a criadora de um jogo em formato first-person shooter, usando óculos de realidade virtual, explica-nos como a sua obra foi indevidamente apropriada, com consequências que extravasam para a vida real. Uma analogia para a proposta de Harmony Korine, que pretende que este jogo se infiltre, até às profundezas da conceção artística, no cinema.

A imagem de alguém que fala para a câmara com uma comunicação a fazer, não de menor importância, mas que está imersa numa outra dimensão, virtual, já é suficiente para nos localizarmos numa abordagem crítica e satírica ao digital. Mas é a brusca transição dessa entrevista, deixada incompleta, para um ecrã repleto de janelas web abertas, paradoxalmente a abarrotar de informação, que confirma a motivação deste filme para o retrato dos ímpetos predominantes no universo da internet, da dark web e dos jogos, que são manifestações da vida existente nestes espaços.

A identidade – e a sua confusão, se não mesmo anulação – é um dos grandes pontos a tocar ao falar de Baby Invasion. A figura que por vezes vemos num canto do ecrã é o jogador, aquele que manipula tudo o que vemos, aquele que tem o poder. É, porém, um poder enganador: um rosto mascarado, impenetrável, estrategicamente camuflado para fazer valer falsas liberdades – que de outra forma nunca são expressas –, já que são ações como automatismos, direções passivamente executadas, réplicas de tantos outros movimentos programados. Em alguns momentos do jogo, é dado até a este (novo modelo de) protagonista uma recompensa por “autorreflexão” – quando se senta ao piano ou quando olha um espelho que não reflete a sua imagem: um pormenor severamente sarcástico mas fundamental para a compreensão das implicações existenciais do jogo, particularmente dentro daqueles que incluem na sua denominação o “first-person”.

O conteúdo do jogo tem tanto de risível como de perturbador. Tratando de um grupo de invasores que abalroam casas abastadas para as poder roubar, todo o potencial destruidor deste ato, que se desdobra em muitos outros, é desconstruído (ou adensado), imediatamente, pela utilização de máscaras de bebés por parte dos invasores – uma alusão a um novo significado de inocência, mediado pela violência?

O panorama que nos é dado a assistir (a existência de um botão live indica essa transmissão) é uma reconstituição distópico-tecnológica de um mundo (nosso) que não se encontra tão longe assim de se tornar no que é representado. É a estética virtual que faz o filme – um chat que se desenrola sem parar no lado esquerdo, com comentários tão naturalistas que facilmente os veríamos caso abríssemos uma transmissão em direto numa qualquer aplicação para esse efeito, a fusão entre glitch, vida real e elementos de videojogos, que nós consumimos e que nos consomem a nós, com choques de cores e imagens que efabulam um psicadelismo digital.

É tentador reprovar o uso de inteligência artificial neste filme. Mas não será a utilização desta tecnologia um meio para a questionar, disromper? Não será preciso entendermos o seu funcionamento para podermos mostrar as suas consequências? O seu aparecimento é tão despropositado como quando nos surge diariamente mal abrimos o telemóvel – terá a arte de se alhear destes mecanismos, se quer chamar a atenção para os mesmos, perceber os seus limites?

O anúncio “this is not a movie” (entre outros, tais como “this is not a game”, “this is not real life”) não nos deixa boquiabertos – a arte já inúmeras vezes nos disse que as coisas podem não ser o que (aparentemente) são. É, afinal, a atualização desses aforismos, de modo a enquadrar outras questões (realidade virtual/aumentada, inteligência artificial), tão fulcrais para o pensamento acerca da vida e da arte, no agora: “the endless now”.

Algumas outras discussões surgem labirinticamente. Num corredor empresarial, quadros com frases motivacionais apontam o ridículo do trabalho, as suas fingidas motivações; a paranoia da vigilância como alavanca para o atordoamento do próprio e do mundo à sua volta; o perigo da movida irrefletida – tudo isto num tratamento de simulação da simulação.

Fruto desta duplicidade é a dinâmica violência no jogo e o jogo da violência – esta é mais implícita do que explícita. À exceção de algumas pessoas no chão ensanguentadas, e de uma confusa cena de luta, que é mais de imobilização, nunca assistimos a violência cortante, tampouco mortes, talvez para dar a (não) ver a sua normalização, estupidificação. O prazer não vem da prática literal da violência, mas da ideia de que a mesma está a ser infligida, propagada – o simulacro é o que dá o ânimo.

A mão divina – sempre tecnológica – que surge para finalizar o (filme-)jogo vai ao encontro de uma inesperada confissão religiosa da criadora do mesmo. A possibilidade de reconciliação entre duas realidades através da fé, ou o seu oposto: a demonstração de que a fácil resolução – por meio da entidade omnipotente cujas formas de ação nos são inacessíveis: deus ex machina – para a falta de rumo pertence somente ao plano da artificialidade e, por isso, um apelo à mão humana?

É cinema, sim. Um novo cinema, vanguarda, que se serve de outros dos seus momentos aonde se refletem questões gémeas – não podemos ver aqui ecos de Trash Humpers, do mesmo realizador, Funny Games (Michael Haneke) ou Idioterne (Lars von Trier)? – retificando, porém, o significado do arreliar social, adicionando uma camada tão importante como o é a do avanço tecnológico: em si, e para a vida que achamos não contagiada por aquilo que de mais tenebricoso se desenvolve virtualmente.

Uma última nota, a de que a experiência sonora que Burial proporciona é de uma independência louvável relativamente ao filme – ainda que, enquanto banda sonora de Baby Invasion, seja um trabalho igualmente irrepreensível – e que, se no local certo à hora certa, seria parte essencial de uma obscura e longa jornada para a noite.

Laura Mendes