Fomos ver o Asteroid City, mas será que isso importa? O novo filme de Wes Anderson (WA) estreia num ponto da sua carreira onde o “estilo” (e voltaremos mais tarde a esta noção importante) que lhe associamos se normalizou de forma abrangente. Por um lado, os média parecem hoje inundados de ideias estéticas que, eventualmente de origens diversas, nascem em directa associação a WA – a simetria, uma excentricidade constrangida, tons pastel, e por aí. Por outro, já todos sabemos, sem a menor surpresa, o que esperar dum filme de Anderson – o seu “estilo” sendo amplamente reconhecível, e claro, obtusa e insistentemente explorado pelo realizador. Asteroid City será disso, como todos os filmes que o precedem, uma evidência.
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Não será um acaso que WA se tenha tornado recentemente o cineasta preferido da tão badalada e tão ameaçadora A.I. (inteligência artificial, amigos), que inunda em 2023, youtube, twitter, instagram ou tik tok de versões retrabalhadas de filmes reputados ou eventos actuais, nomeadamente “in the style of WA” (Star Wars, a coroação de Carlos, o Campeonato de Mundo de futebol, …). A tempestade perfeita do realizador pode até ter já acontecido, com a aclamação mundial do (desculpem) insuportável The Grand Budapest Hotel, provavelmente o seu pior filme. Mas hoje, mais do que nunca, au lieu de fazer parte duma “instituição”, Anderson é a sua própria instituição – com toda a segurança comercial e franca decadência artística (ou, melhor, estilística) que progressivamente se evidenciam na sua obra.
Quanto ao dito “estilo”, se é inegável que Anderson tem um estilo, discutível será do que trata esse estilo. A reconhecível artificialidade formal sempre lá esteve, claro, mais ou menos abrangente, e mais ou menos opressiva, tendo sido cedo o alvo predilecto dos seus detractores. Mas se The Royal Tenenbaums (não querendo recuar a terrenos mais ambíguos) se assumia já formalmente obsessivo e caricatural, afogado na sua anacronia umbilical, trata-se dum filme estruturalmente muito mais aligeirado do que tudo o que viria após Fantastic Mr. Fox (até ver, com Budapest, o seu filme mais federador, para o bem e para o mal). Tenenbaums era, em 2001, bem mais Salinger do que Ladurée (o inverso sendo, claro, Budapest); um filme onde Demy, com Bodgadnovich, parecia espreitar a cada plano, ao som de Paul Simon ou Ramones. Uma certa candura no retrato dos seus personagens, um olhar tanto romântico quanto rêveur sobre o mundo, pareciam servir de sustento moral a um todo já tão estruturalmente obsessivo. “I love the way this country smells, I’ll never forget it” dizia Brody no final de The Darjeeling Limited, e o cinema de WA guardava, por então, um certo cheiro do real, uma textura, para além de todas as suas obstinadas manias.
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“I think I have this thing where I need everyone to think I’m the greatest, the quote unquote Fantastic Mr. Fox. And if they aren’t completely knocked out and dazzled and kind of intimidated by me, then I don’t feel good about myself. Foxes traditionally like to court danger, hunt prey and outsmart predators, and that’s what I’m actually good at.”
Anderson, claro, individualista e seguro, escolheria construir toda a sua carreira em martelada confirmação de tudo o que lhe criticaram desde o primeiro dia. Mas tanto, que é hoje difícil reencontrar essa frágil sensibilidade que tornara os seus filmes de outrora especiais, por debaixo das camadas e camadas de tralha idiossincrática e rigor estrutural com as quais foram pouco a pouco cobertos. O encantador jeito com o qual o realizador virava completamente o tom duma cena – do musical ao dramático, do comovente ao cómico – parece ter hoje dado lugar a uma insistente exploração formal de artificialismo total – exploração essa, não tanto de “cinema”, mas em cinema, sobretudo de composição (ou design, se quiserem).
Nesse sentido, se a estética de Anderson se tornou “norma”, própria a um certo estilo de vida (o termo cultura seria aqui exagerado) de profunda gentrificação, essa ordem terá sido implantada finalmente à custa dos valores mais especiais do seu cinema passado. É difícil lembrarmo-nos hoje de que The Life Aquatic é filmado quase integralmente numa câmara “de mão”, solta, que o realizador já não arrisca desde Moonrise Kingdom. E se agradecemos que Anderson se abstenha agora de encenar momentos marcantes ao som de Sigur Rós, a verdade é que será difícil encontrar uma cena verdadeiramente marcante porque sentimental na sua filmografia desde a dança final no supermercado de Mr Fox.
Por outro lado, a execução técnica das suas composições é, a cada filme, mais impressionante, a sua criatividade inventiva cada vez mais profusa – sendo disso o irritante The French Dispatch o exemplo perfeito. Mas para quem espera o “vento nas árvores”, as insondáveis maisons de poupées de WA são algo irrespiráveis – folies estruturalistas cuja finalidade se cinge à sua própria imbricação. É na verdade com alguma nostalgia pelo seu cinema nostálgico, juvenil e imperfeito de outros dias, que nos falava tanto duma como de todas as famílias, que visitamos Asteroid City, sendo difícil não pensar à partida como seria francamente interessante que Anderson voltasse um pouco ao cinema e se deixasse de tanta “bonecada”. Mas Mr Fox já avisara : “tails don’t grow back. I’m gonna be tail-less for the rest of my life.“
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Asteroid City é o natural (e digno) sucessor de The French Dispatch. Uma monumental caixa de caixinhas dentro de caixinhas, de narrativas dentro de narrativas, e um leque de personagens peculiares e idiossincráticas, perfeitamente arrumadas e manipuladas por Anderson. Como no seu filme “francês”, a execução é admirável, sem o mínimo detalhe deixado ao mínimo acaso, uma sobreposição formal de diferentes narrativas (tempos, espaços, conceitos) particularmente impressionante.
Um filme sobre um confinamento, filme sobre a América e os seus “aliens”, sobre uma paz construída de verdades escritas (you’re safe, America remains at peace). Um filme sobre representações, várias e sucessivas : a fotografia duma actriz que ensaia um texto, na versão cinematográfica duma peça da qual nos contam o processo criativo num espectáculo televisivo inventado… E sobretudo, um filme sobre o mistério para além da aparência, o verdadeiro para além do real (da fotografia).
– I still dont undestand the play.
– Doesn’t matter, just keep playing.
Asteroid sugere um olhar sonhador e curioso sobre as estrelas, mas, sempre papagueando em vez de fantasiar, frustra sistematicamente qualquer eventual desvio do espectador relativamente à forma concreta que lhe é apresentada. Por vezes fá-lo mal – a “aparição” – mas, por outras, particularmente bem – a cena sob a neve estilizada, com Margot Robbie. Mas se nos despedimos com a ideia repetida de que “you can’t wake up if you don’t go to sleep” – sim, já percebemos, obrigado – Asteroid é, apesar de tudo, peculiarmente discreto, sem grandes arroubos dramáticos e com uma perfeita dedicação à estruturação do filme. Essencialmente um filme cuja forma é conceptualmente interessante, mas um objecto demasiado estilizado e consideravelmente rígido para ser verdadeiramente, ou melhor, cinematograficamente, interessante. Através das suas imagens meticulosamente concebidas, a sua ostentação formal neutraliza enfim qualquer tensão emocional ou narrativa.
Mais do que repetir temáticas queridas ao realizador (o que seria perfeitamente justificável), Asteroid City parece, tanto um novo capítulo duma série, arrastar ecos de narrativas passadas dos seus filmes. A doll-house tornou-se de tal forma complexa e labiríntica, que ao seu centro não parece guardar algo de francamente relevante. E, na verdade, a famosa artificialidade de WA, tanto perfeita, parece ir perdendo o seu interesse à medida que o seu valor “artesanal” desaparece.
Uma última nota quanto ao sempre expansivo e rico leque de actores destes filmes. É mais do que louvável que Anderson consiga utilizar Tom Hanks sem que ele se dê aos típicos jeitos insuportáveis que lhe construíram uma carreira (fora a cena onde propõe um mano a mano contra o seu genro). Quanto a Schwartzman, actor principal da troupe de Asteroid City, será algo sintomático do seu talento o facto de não ter qualquer carreira de relevo para além dos filmes de WA: a sua presença em cena é penosa. Por outro lado, as três encantadoras irmãs Faris – Pandora, Andromeda, Cassiopeia (nomes alinhados com o olhar sobre as estrelas que o filme sugere) – são o exemplo da frescura, digamos, informal, que a estes filmes hoje escasseia.