Asphalt City, de Jean-Stéphane Sauvaire: Cinquenta Nuances de Preto

Hugo DinisMaio 21, 2025

Na sua representação da vida de um paramédico em Nova Iorque, Asphalt City está muito mais próximo do anterior trabalho de realização de Sean Penn do que idealizações como Bringing Out The Dead de Martin Scorsese. Seguindo fundamentalmente a jornada de aprendizagem de um jovem estudante de medicina (Tye Sheridan) pela mão de um veterano do assunto (Sean Penn), Asphalt City adopta desde cedo um registo impressionista para se reconfortar no sofá do suspense com pretensões de terror. As imagens que o realizador Jean-Stéphane Sauvaire procura explorar são levadas ao extremo do mais provocante miserabilismo: toxicodependentes em momentos de crise médica, vítimas de violência doméstica em iminente ameaça, outros paramédicos em vias de surtos psicóticos. Ao passo que Bringing Out The Dead retratava (muito ao estilo de Scorsese) um homem em crise de fé, Asphalt City não tem dúvidas sobre a futilidade da profissão de paramédico. Para sustentar a sua premissa, o enclausuramento do espectador nesta rede de sofrimento é total, ao ponto de questionarmos se Asphalt City será, de facto, uma homenagem à profissão ou simplesmente um escarafunchar escatológico da violência que lhe é inerente.

Sean Penn & Tye Sheridan

Seguindo o molde de alguns filmes policiais da América urbana (Training Day, Dragged Across Concrete), Penn e Sheridan representam, respetivamente, os estereótipos do veterano resignado às agruras e ao desgaste do quotidiano, e o novato em perspectiva de crescimento pessoal. A sua relação é marcada pela inevitável quebra mental de Sheridan: um jovem estudante com evidente brilhantismo académico, levado ao limite da sanidade por um dia-a-dia marcado por corpos estropiados, mulheres brutalmente violentadas, crianças mortas, e animais em estado de decomposição. O quotidiano de Sheridan e Penn está logo em evidência na sequência inicial de Asphalt City: uma espécie de pesadelo de ansiedade sobre as lutas numa grande cidade em que o valor da vida está ao preço de um café. Nela, podemos recordar uma sequência de pendor similar, ainda que apresentada de forma alegórica, na introdução do nervoso Beau Is Afraid, de Ari Aster.

Apesar disso, Asphalt City não vira a cara às consequências pessoais do trabalho. Penn é um espectro do homem que já foi, a enfrentar um afastamento da sua filha perante o novo casamento da sua ex-mulher, enquanto Sheridan vive num quarto minúsculo em Chinatown, onde a alienação parece ser interminável, e sofre para manter uma relação amorosa com uma mãe solteira. Sheridan e Penn são duas faces da mesma moeda. A sua luta representa apenas dois diferentes estágios de futilidade no serviço ao próximo. Veja-se a relação de Sheridan com a namorada, cujo nome nunca se encontra explícito: Sauvaire faz questão de nos imiscuir na profunda intimidade da vida sexual dos dois por diversas vezes, mas sempre numa lógica de alienação para Sheridan. Os seus esforços para ser um homem comum, com uma capacidade de conexão ao que o rodeia e aos que lhe são mais próximos parece estar sempre dependente da sua própria sanidade no contexto do seu trabalho. Para Penn, o caso muda pouco de figura. A sua salvação é progressivamente retirada por Sauvaire até pouco restar, por entre passados casamentos e filhas distantes.

Nesse sentido, também é importante que Asphalt City se enquadre no cinema de intervenção que Penn tem vindo a protagonizar em tempos recentes. Sauvaire não só filma com essa intenção, como até faz questão de ir mais além. O sistema irreparavelmente quebrado no campo da saúde, nos Estados Unidos, faz de Asphalt City uma interessante oportunidade para o comentário social em torno das suas margens. A cidade é impiedosa e o panorama é o mais negro possível. Para Sauvaire, este não é apenas um sistema em falência ou uma oportunidade de humanizar os profissionais que nele trabalham. É antes, e sobretudo, uma lupa apontada para uma profissão condenada à partida pela própria natureza do sofrimento humano. A visceralidade das imagens é, assim, simultaneamente atroz, desumanizante e paralisante. Não convoca compaixão ou empatia, apenas curiosidade mórbida. Sobretudo por isso, a peça central em Asphalt City torna-se a assistência de Penn e Sheridan a uma mãe em trabalho de parto, num imenso mar de sangue. O episódio coloca a Penn o expectável dilema entre as obrigações do trabalho e a oportunidade para a misericórdia. Esta escolha não tem a mesma carga religiosa que Scorsese oferece aos seus paramédicos, mas coloca nas mãos de Sauvaire o impulso do abismo.

Tye Sheridan

A dor não termina, nunca termina, e não há luz ao fundo do túnel. Como se não bastasse, Sauvaire faz questão de a acentuar com cortes abruptos, sons estridentes e obscuridade permanente. Este tipo de sensacionalização do miserabilismo não é novo para Penn (The Last Face), e coloca no espectador o ónus da sua dor. Somos convidados a sofrer, sem compromissos nem caminhos de saída. Asphalt City é um filme inegociável, com a leveza de um cutelo de talhante, mas conformado e resignado à sua própria visão do mundo. A humanidade por um canudo nas mãos de um inferno de sofrimento. Quarta-feira para Sean Penn, portanto.

 

Hugo Dinis