Se fosse vivo Marlon Brando faria, em 2024, 100 anos. A ocasião está a ser celebrada no cinema Medeia Nimas, em Lisboa, onde foi e está a ser possível rever alguns dos melhores momentos da carreira do actor. Para muitos considerado o melhor de todos os tempos, pioneiro do method acting, Brando foi um dos maiores ícones da história da Sétima Arte. A sua carreira nasce da união entre esse método incorporar sentimentos e emoções através do seu físico e é precisamente graças à sua sua imagem que Brando conseguiu capturar o magnetismo e carisma que o caracterizam. Responsável por polémicas no que diz respeito ao seu profissionalismo, a década de 60 caracterizou-se como o seu declínio.
Brando era não era mais bem-vindo. Amaldiçoando o bom funcionamento de várias produções, começou a tornar-se persona non grata na indústria. Foi em 1972 que Coppola o recuperou em The Godfather, extraíndo uma das interpretações mais emblemáticas do cinema. Brando viria a ganhar o Óscar, que recusou receber. Não se sentia parte da indústria. Last Tango in Paris e Apocalypse Now seriam as suas duas outras interpretações mais badaladas, ambas com histórias de produção complicadas, ainda nos anos 70, para depois o actor perder a sua chama, década após década.
Deixemos o lado negro e regressemos ao brilho dos anos 50, a primeira e mais forte década da carreira do actor. Foi Fred Zinnemann que “descobriu” Marlon Brando. Em The Men (1950), o actor interpretou um veterano de guerra paraplégico imerso na solidão da sua condição, para amargura da sua noiva, cada vez mais invisível. Mas foi Elia Kazan que deu a conhecer ao Mundo o génio da figura de Brando com A Streetcar Named Desire (1951), onde interpreta um jovem bruto, destruidor, sedutor. Uma força da natureza que mereceria análise em artigo próprio. O actor apura seguidamente a sua técnica em Viva Zapata! (1952), experimenta uma interpretação mais clássica na adaptação de Shakespeare às mãos de Mankiewicz com Julius Caesar de 1953 (três interpretações seguidas que lhe valeram nomeação para o Óscar de melhor actor), e arrasa as normas em Wild One (1953): uma interpretação que alguns apelidam como genial e avant garde, outros como irresponsável e pouco profissional.
Seguir-se-ia On The Waterfront (1954) – Há Lodo no Cais, na tradução portuguesa -, que lhe daria finalmente o primeiro Óscar, e que foi possível rever, com a experiência de hoje, no ciclo dedicado ao centenário do actor no cinema Nimas, em Lisboa. O entusiasmo era real para ver o que muitos consideram ser a melhor interpretação de todos os tempos. A reacção inicial foi morna. Naturalmente é uma belíssima interpretação, mas não existiu um sentimento verdadeiramente arrebatador. Afinal de contas já vimos inúmeras interpretações semelhantes, de realismo de método, fisicalidade e entrega de linhas de diálogo escorreito em choque com a interpretação clássica teatral. E é aí que nos apercebemos: Waterfront é um filme de 1954. Naquela época, a actuação era teatral e objectiva, e esta é provavelmente a mais célebre “primeira vez” em que um actor incorpora um papel de uma forma tão imersiva, isto é: em que o actor se confunde com a personagem. Brando move-se como uma pessoa real. Ele coça o nariz e a cabeça, sorri nervosamente, às vezes, outras vezes com autoconfiança. Ele duvida de si mesmo, duvida do seu irmão, reflete sobre a vítima do sindicato do cais, que vemos assassinada na primeira cena do filme, apenas para acabar por se aproximar da enlutada e triste irmã do homem assassinado. Terry Malloy (ou Marlon Brando) sente culpa? Amor? Será que sente sequer alguma coisa?
On The Waterfront poderia ser apelidado de um filme da Nova Hollywood, 15 anos antes do movimento acontecer. Podemos ver o cinema de Scorsese por toda parte em Waterfront, bem como a interpretação onde os outros dois grandes, De Niro e Pacino, encontraram a sua inspiração. On The Waterfront é o pioneiro desse realismo dramático de diálogos livres. Raging Bull seria uma versão aprimorada da sua linguagem cinematográfica, com Robert De Niro a entregar finalmente a interpretação que em muitas “listas” ousou ultrapassar a de Brando como a melhor de sempre, mas repare-se: Raging Bull acontece em 1980, 24 anos depois de Brando ter “criado o género”!
Mas o filme de Elia Kazan não é só inovação, e é nesse diálogo com a Antiga Hollywood (?) que Elia Kazan encontra perfeito equilíbrio formal. O filme tem a capacidade de oferecer cenas mais teatrais e simbólicas, dir-se-ia até descritivas, que fornecem uma estrutura robusta para a tela da atuação livre de Brando. Para encerrar o pacote também temos a performance clássica e aterrorizante de Lee J. Cobb (o brilhante jurado nº 3 em 12 Angry Men), como o vilão Johnny Friendly, também nomeado para melhor actor secundário. Cobb é um furacão de energia, mas não está sozinho a suportar Brando: Karl Malden (o padre) e Rod Steiger (o irmão), igualmente brilhantes, também foram nomeados na mesma categoria. Por fim a outra grande estrela do filme: Eva Marie Saint no papel de Edie, que procura justiça para o seu irmão e por quem Terry Malloy acaba por se apaixonar. A actriz já tinha bastante experiência em televisão, mas este foi o seu primeiro papel no grande ecrã, actuando corajosamente ao lado de Brando, como se estivesse a seguir os movimentos da dança do actor. Nascia uma lenda.