As Flores, de Madalena Fragoso: uma conversa com a realizadora

Pedro BarrigaMaio 14, 2025

No passado dia 10 de Maio, a realizadora Madalena Fragoso sentou-se à conversa com a Tribuna do Cinema a propósito do seu novo filme, As Flores. Trata-se da sua segunda longa-metragem – depois de A Casa e os Cães, co-realizada por Margarida Meneses em 2019 – mas a primeira a solo. As Flores teve estreia mundial na Competição Nacional do IndieLisboa (1 – 11 Maio).

 

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Comecemos pelo fim. Nos créditos finais do filme informas-nos que tudo o que vimos foi filmado com um iPhone 6. O iPhone como câmara de filmar foi uma escolha deliberada ou fruto de, por exemplo, falta de meios?

Eu comecei a filmar estas imagens sem objetivo. Nunca foi com o propósito de fazer um filme. Eu estava num quiosque a trabalhar – isto foi depois de eu sair da escola de cinema, mas antes de começar a trabalhar em cinema. Filmar já era uma gesto habitual, entre mim e as pessoas com quem eu vivia, os meus amigos. Filmar, sempre, tudo. Estar sempre a filmar. O iPhone era aquilo que nós tínhamos à mão para o fazer. Então, sempre que queria filmar alguma coisa, filmava com o iPhone. Mas nunca com o objetivo de fazer um filme. Não foi nem falta de meios, nem deliberado. Foi apenas a matéria que eu tinha para filmar à minha frente.

Quando é que surgiu a ideia de tornar isto numa longa-metragem?

Em 2020, quando as coisas pararam todas. Entre 2015 e 2020 fui sempre revendo estas imagens, porque diziam-me muito. Foi uma altura muito feliz da minha vida. Tinha estas imagens em arquivo e estava sempre a revisitá-las. Tinha muitas pessoas sempre a perguntar por estas imagens, se eu ia fazer alguma coisa com elas, se as conseguia juntar. Para mim, aquilo que me frustrava era as imagens ficarem só em arquivo, no meu arquivo, sem poderem ser montadas, sem lhes dar um sentido. Dava-me mesmo muita pena que as imagens ficassem só perdidas. Portanto, passados cinco anos, pensei que queria fazer algo com elas. A ideia seria uma exposição ou um filme, mas aquilo que eu quero fazer é filmes. Portanto, foi aí que eu comecei a pensar que tinha de edificar estas imagens de alguma forma, de as edificar num objeto. E a forma que fazia mais sentido era um filme.

As imagens captadas são apresentadas em formato quadrado. Porquê esse formato?

Eu filmei todas as imagens em 9:16, portanto em vertical, porque o telemóvel estava sempre pousado dentro de um copo, o copo das gorjetas. Na altura, partilhava-as no Instagram em quadrado, porque em 2015 o Instagram só permitia publicações em 1:1. Portanto, fez-me sentido que o filme também fosse em 1:1.

Ou seja, é um filme 100% de 2015, e não de 2025.

Completamente de 2015, mesmo. No entanto, a montagem só poderia ter sido feita passados estes anos todos, com outra maturidade.

Sobre a captação das imagens, a maioria parece ter sido captada a partir do interior do quiosque da Praça das Flores. No entanto, por vezes, parece que vemos a praça de ângulos diferentes, exteriores ao quiosque, correto?

Só há três planos filmados no exterior do quiosque, que são os planos dos homens em cima das árvores a cortar os ramos. É o único momento em que me perguntam – a senhora que estava a supervisionar a obra – “Desculpe, está a filmar para quê?” E eu respondi “Ah, estou só a filmar para mim.” Estava na minha hora de almoço. Depois perguntou-me se eu tinha autorização para filmar. De resto, todos os outros planos foram filmados do interior do quiosque, pelas quatro janelas do quiosque – o quiosque tem esta forma panóptica.

Nesse momento em que te perguntam se tens autorização para filmar, o espectador não vê quem é que te está a fazer essa pergunta, nem ouve a tua resposta. E, por isso, queria te perguntar qual é a tua opinião sobre este debate frequente entre captar pessoas no espaço público e o direito à imagem de cada um.

Não tenho uma opinião fixa. Acho que é legítima a preocupação das pessoas, ao verem-se representadas em imagens ou ao perceberem que as estão a filmar e não saberem qual é o propósito da pessoa ou da entidade que as está a filmar – porque isso é o que vivemos já há vários anos na nossa vida quotidiana. Tens câmaras de vigilância a filmar-te na cidade, em lojas, restaurantes. Houve uma democratização tecnológica do objecto que filma. Temos todos fácil acesso a um e, por isso, existe reticência ao seres filmado. Existe uma vontade enorme de controlo sobre a imagem que é passada para os outros, fruto também dessa democratização e do capitalismo da imagem. Fruto desta ideia que só tu podes controlar a tua imagem, vendê-la como queres, para que os outros a comprem e acreditem nela. Nos últimos dez, quinze anos, tem crescido uma consciência, um sentido de perigo em relação à câmara – em específico esta câmara, a do telemóvel. A câmara enquanto arma, mas também enquanto defesa. Black Lives Matter não teria começado se não houvesse um vídeo do George Floyd a ser brutalmente agredido resultando na sua morte. Em relação a este filme em específico, o objetivo era ter um testemunho fílmico de uma altura, de uma época, de uma cidade.

Quantas horas de material filmado tinhas?

Tenho dez horas filmadas.

Que ficaram reduzidas a uma hora.

Sim.

Disseste que a ideia do filme surgiu em 2020, mas e o processo de montagem? Ocorreu desde então ou só mais recentemente?

O processo de montagem ocorreu desde então. O que eu fiz primeiro – e isso foi o que demorou mais tempo, anos – foi a organização do material. Dentro de tudo o que eu tinha, dentro dos diferentes pontos de vista. Comecei a organizar primeiro por janelas. Ou seja, as quatro janelas do quiosque – tinha uma janela que apontava para a esplanada; outra janela que era o balcão da frente; outra janela dava para a Rua Nova da Piedade, que desce até à Assembleia; e outra janela que apontava para o banco, onde as pessoas se sentavam e tomavam o café. De repente, essa organização foi-se afunilando para os miúdos da Escola Passos Manuel, a senhora que vinha todos os dias pedir um café e um cigarro e que se sentava no banco, um taxista, a senhora dos três cães, os amigos… Fui afunilando a seleção, para perceber o que é que eu tinha de facto filmado e o que é que eu queria com este objeto fílmico. Só sabia que queria dar algum sentido a estas imagens. Portanto, fui descobrindo e só mais recentemente é que eu percebi o que é que o filme era para mim: são as pessoas a ocuparem um espaço público, as pessoas que trabalham nesse espaço, as pessoas que vivem esse espaço, as pessoas que se cruzam, as pessoas que não se cruzam, as conversas perdidas, os gestos repetidos. Foi um processo muito longo, com muitas pausas pelo meio.

O filme está montado por ordem cronológica?

Não, de todo. Não sei qual é a sensação que o filme dá, se parece que é um dia, se parece que é um ano, se parece que é um mês, se parece que são várias estações… Por exemplo, o filme é pontuado por este homem que está a pintar o marco do correio, e os dias vão-se passando, mas ele fez aquela pintura em duas horas.

Dirias que As Flores é um filme feliz ou é um filme triste? Eu achei interessante que os momentos mais felizes e puros eram os com crianças e jovens, enquanto que muitos dos adultos expunham os seus problemas, que consomem as suas vidas.

Eu acho que é um filme feliz e é um filme triste. Eu acho que é um filme da vida e eu acho que a vida é isso tudo. Aparentemente nada é espetacular, daquilo que nós vemos no filme, mas tudo é extraordinário, porque as vidas das pessoas são isso. Tudo é um bocadinho feliz, tudo é um bocadinho triste. Há doenças, há problemas, há leveza também. As classes sociais estão à vista e aí existe confronto e conflito, mas às vezes não são os espaços públicos que promovem este encontro. Espaços esses cada vez mais raros na possibilidade do encontro, cada vez mais tomados, privados, cercados. Eu não sei dizer se é um filme feliz ou se é um filme triste. Acho que é um filme em que se sente as duas coisas, em que se pode sentir tudo. Não sei se há um sentimento que prevalece no final. Para mim não há.

Para minha surpresa, o filme tem muito humor. E de facto, durante a exibição de dia 7 na Culturgest, houve vários momentos de gargalhadas por parte do público. Estavas à espera desta reação?

Eu sabia que ia haver gargalhada, mas não sabia que ia haver tanta gargalhada. Ao falar disto com amigos depois, percebi que estou muito por dentro destas imagens. Revejo-as há 10 anos. Quando as filmei, e quando as vi pela primeira vez, e pela segunda vez e pela terceira vez, eu ri-me muito. Acho que estas imagens têm sentido de humor, porque acho que a vida tem sentido de humor. É inesperado – e tudo o que se passa na rua é inesperado. Não sabes o que é que vai acontecer. Mas à medida que fui pensando e aprofundando aquilo que eu sinto em relação a estas imagens, deixaram de ter piada para mim. Por isso, foi muito surpreendente para mim haver tantas gargalhadas. Fiquei com algum receio que estas gargalhadas continuassem, porque uma coisa que eu queria muito que não acontecesse é que as pessoas que eu filmei se tornassem caricaturas. Isso preocupou-me, mas acho que o riso foi diminuindo ao longo do filme. No final há este momento mais longo, mais silencioso, com menos pessoas – o chão está a ser alcatroado – e o público ficou sério, o que me acalmou. Eu não queria que estas pessoas fossem caricaturadas.

Que futuros projetos podemos esperar da Madalena Fragoso? Algo na mesma linha que As Flores ou algo diferente?

Certamente algo na mesma linha que As Flores e que A Casa e os Cães. Algo entre o improviso e uma ideia de cinema que não segue um modelo de produção estandardizado. Alguma coisa intuitiva. Não sei o que esperar de Madalena Fragoso.

Pedro Barriga