Artigo Conjunto – Espectador Ativo

EquipaSetembro 12, 2022

Por ocasião do lançamento da Tribuna do Cinema, redigimos um artigo conjunto, algo que pretendemos que se torne um procedimento regular do site, também aberto a contribuições externas. Como pontapé de saída, debruçar-nos-emos sobre o próprio título deste novo espaço de escrita, enquanto lugar do espectador ativo. Convidando a diferentes e complementares abordagens, os redatores foram desafiados a dissertar sobre uma determinada cena, filme ou realizador que vá ao encontro deste abrangente conceito, nas suas várias dimensões, ligadas, por exemplo, ao voyeurismo, à metalinguagem ou ao ato de ver.

The Woman Who Ran (2020), de Hong Sang-soo

Os filmes do cineasta sul-coreano possuem frequentemente referências autobiográficas nas suas inúmeras variações narrativas. Acompanhamos habitualmente personagens ligados ao mundo do cinema, muitas vezes realizadores, e é possível discernir vários paralelos entre a ficção e a vida real de Hong Sang-soo, nomeadamente a relação extra-conjugal com a atriz Kim Min-hee. Em The Woman Who Ran, a atriz e musa do realizador, volta a ser protagonista. No entanto, é-lhe reservado um intrigante papel de espectadora. O filme encontra-se dividido em três partes, sendo que nas duas primeiras Gam-hee (Kim Min-hee) visita a casa de duas amigas, partilhando experiências e refeições, quando o seu momento idílico é perturbado pela indesejável visita de dois homens. Gam-hee (e o espectador), observa parte destes episódios de maior conflito narrativo através das câmaras de vigilância, contemplando a ação que se desenrola fora de campo, vendo sem ser vista.

Esta decisão resguarda a protagonista das situações de maior carga dramática, reservando-lhe uma posição equivalente à do realizador, estabelecendo uma distância que resulta da interposição de um dispositivo entre a personagem e a ação. A terceira parte do filme decorre numa sala de cinema. Gam-hee cruza-se com uma mulher e um homem que fizeram parte do seu passado, tornando-se progressivamente evidentes as cicatrizes por sarar que advêm dessas relações. Entre os (des)encontros, a protagonista visualiza o filme que se encontra em exibição. Dentro da sala, a câmara detém-se na tela, ocupando todo o quadro. Nela, observamos o mar que invade o areal de uma praia, a preto e branco. Posteriormente, através de uma panorâmica, a câmara vai ao encontro da espectadora Kim Min-hee.

Saída da sala de cinema, e após mais dois dedos de conversa, uma maçã e um cigarro, quando se prepara para abandonar aquele espaço, Gam-hee detém a marcha e decide rever o filme. Novamente dentro da sala, a câmara detém-se agora inicialmente na protagonista. Posteriormente, através de uma panorâmica, vamos ao encontro da tela, que volta a ocupar todo o quadro e na qual observamos exatamente as mesmas imagens, do mar e da praia. No entanto, as imagens, outrora a preto e branco, são agora coloridas. É sobre estas imagens que rolam os créditos finais de The Woman Who Ran.

Os filmes do realizador sul-coreano não se pautam pelo uso simplista de metáforas nem convidam a descodificações complexas, antes pelo contrário. Apesar disso, os quatro momentos descritos e ilustrados, convidam a uma reflexão sobre o papel reservado a Kim Min-hee nesta obra em particular. Um papel de espectadora de pequenos filmes dentro do filme. O gesto de abstração da protagonista das situações de maior tensão dos dois primeiros episódios é substituído, no terceiro, por intervalos de imersão na sala de cinema, que tiram o sabor amargo deixado pelo confronto com as vidas passadas. E no final um inesperado momento de graça, como o raio verde do pôr-do-sol no horizonte (Le Rayon Vert (1986), de Éric Rohmer), um milagre testemunhado pela câmara do realizador, pelo espectador e pela protagonista, que se materializa na subjetividade do ponto de vista de Kim Min-hee e lhe atribui o poder de, ativamente, transformar aquilo que vê. 

Bruno Victorino

The Novelist’s Film (2022), de Hong Sang-soo

Em uma das primeiras cenas de The Novelist’s Film, novo filme de Hong Sang-soo, a personagem principal Junhee aprende a recitar um poema utilizando a linguagem de sinais coreana. A renomada escritora, que há muito não escreve, admite mais tarde ter a vontade de fazer um curta-metragem, isto é, quer aprender a dizer as coisas de outra forma: com imagens. Se podemos recitar um poema com as mãos, então por que não poderíamos também traduzir sentimentos com uma câmera?

Pouco depois, Junhee esbarra em uma amiga que é esposa de um diretor de cinema, e o casal a convida para um café. Durante a conversa (na qual ela aparenta estar pouco interessada), a cineasta em germinação observa concentrada algo no parque com a ajuda de um binóculo.

Sang-Soo escolhe um plano subjetivo para narrar o que vê Junhee. Às vezes não há nada melhor para se expressar um olhar do que precisar esse mesmo olhar – a base do voyeurismo no cinema é essa, como os dois filmes-chave do tema nos ensinaram (Rear Window (1954), de Alfred Hitchcock e Peeping Tom (1960), de Michael Powell). Podemos ir até mais longe, e afirmarmos que a simplicidade e a beleza de ver o mundo através dos olhos de alguém é talvez a razão pela qual o cinema em si é tão indispensável.

A priori, não sabemos muito bem o que Junhee está olhando. O plano é muito aberto, o preto e branco torna a paisagem agradável a contemplar mas difícil de decifrar. O cineasta nos ajuda então: com um longo zoom, nosso olhar se aproxima da pista no parque onde a personagem de uma famosa atriz interpretada por Min-hee atravessa a rua do parque em um passo apressado.

É essa simples ação de observar uma mulher atravessando uma pista num parque que vai ditar toda a segunda metade do filme, que nada mais é que uma metáfora para Sang-soo expressar o tanto que ele ama olhar para a sua esposa. Atualmente Sang-soo, ao filmar Min-hee, filma mais que uma personagem, ele filma um sentimento. E nós experimentamos esse sentimento quando o vemos traduzir seu amor por ela em encontros fortuitos, metáforas cíclicas e diálogos honestos. Um filme sobre aprender a olhar o mundo, e, com isso, aprender a amar.

Diogo Serafim

In Order Not to Be Here (2002), de Deborah Stratman

Em In Order Not to Be Here, de Deborah Stratman, primeiro ouvimos e depois passamos a ver. Mas com o que ouvimos – dois homens falando através de rádios policiais – já sabemos com o que vamos nos deparar. Sem qualquer cerimónia, sendo isto um intercâmbio que normalmente não veria (ou não se ouviria) a luz do dia, ouvimos da voz mais cristalinaalright, another 15 feet and you’ll run him over, enquanto a outra voz se perde numa interferência robótica. A imagem abre e vemos uma visão aérea de uma câmera policial. São os olhos da voz que segue instruindo os seus colegas em direção ao alvo. Uns policiais prendem os espectros infravermelhos enquanto outros seguram os cães furiosos que ladram os homens capturados. Passada essa cena, Stratman insere um intertítulo: “It is not necessary to be someplace else in order not to be here”.

De lá para cá, a câmera instala-se num subúrbio nos Estados Unidos. Estamos num estado de vigilância. Ruas vazias, postes de luz cujas imediações estão completamente drenadas em escuridão, bombas de gasolina, carros de patrulha e um holofote que passeia por uma casa típica de um subúrbio norteamericano. O imaginário cinematográfico dos subúrbios agora é moldado por outro tipo de câmera. Alguém definiu o filme como uma espécie de slasher sem assassino. Filmado em 16mm, as imagens retêm as fachadas brilhosas dos comércios como também deixam o arredor cair numa escuridão pantanosa, desprovida de detalhes. Quando já estamos habituados a transitar naquela escuridão alarmante, Stratman corta para o plano de uma cadeira estofada numa esquina de uma casa – tanto pode ser a fachada de uma loja como a casa típica de um norte americano médio –, um livro de receitas aberto sobre a bancada da cozinha e o despertador de uma criança dormindo. A câmera penetra esse espaço de ilusória segurança com a facilidade de um corte.     

Bautista Godoy

Um Filme Falado (2003), de Manoel de Oliveira

Do conceito de “voyeurismo” gostaria de reter duas premissas: 1) a presença de um sujeito que vê sem ser visto; 2) a qualidade obscena, isto é, destituída das negatividades do segredo e da distância, da coisa ou do acto que se oferece como objecto ao olhar desse sujeito. Dito isto, preciso agora de avançar com uma hipótese teórica: a de que, no nosso tempo, a forma subjectiva (excluo por isso as câmaras de vigilância e outros pontos de vista desincorporados, que passam bem sem espectador) do voyeurismo incida não sobre uma realidade plenamente externa, um Outro que se deixa “ver”, mas seja antes eminentemente auto-reflexiva, sem que estejamos perante uma “reflexão” no sentido forte do termo. Trata-se, na verdade, de um scan que o sujeito realiza em permanência sobre si próprio, buscando o consolo do obsceno: há que distinguir e suprimir os pensamentos malignos, há que desenterrar e “processar” os traumas, e uma vez feito esse pequeno esforço, podemos estar confiantes de que nos encontramos a caminho da redenção. Como é evidente, este sujeito não precisa de coincidir com uma pessoa individual; para os nossos presentes propósitos, interessa-nos aliás essa suposta subjectividade universal a que chamamos Humanidade, que todos os dias se espia e se condena e se redime a si própria através do estudo (e do fazer) da História.

Neste sentido, como em tantos outros, veremos que Um Filme Falado, de Manoel de Oliveira, é um filme de uma estranhíssima, quase autista, modernidade, que, mais do que romper com a tradição ou santificá-la, está interessado em mobilizá-la contra o presente. Quando o mito de uma História universal já foi justa ou injustamente denunciado como “eurocêntrico”, Oliveira tem a ambição de nos apresentar uma narrativa total (ou seja: com princípio, meio e fim) da Civilização, que surge figurativa e literalmente ancorada numa série de portos e lugares de interesse turístico e museológico em torno do Mediterrâneo – Nápoles, Atenas, Cairo… Na viagem de um cruzeiro, uma mãe e uma filha visitam ruínas, portais para o passado, que aludem a um Todo (o Ocidente, ou dito de outra forma, o Universal?) irrecuperável; mas não estamos perante um scan neurótico, nem os segredos sujos da História parecem interessar especialmente a Oliveira (sem que, a propósito por exemplo da construção das pirâmides do Egipto, passe despercebida a obscenidade dos discursos que justificam a escravatura humana). Aquilo que mãe e filha encontram nessas ruínas é um outro mundo, perdido para o presente, mas nem por isso menos real enquanto matéria inamovível, insubmissa, evidência incómoda do que não é mas “poderia ter sido” – e se o grego, e não o inglês, fosse hoje a língua global?, pergunta, numa ingenuidade meio fingida meio sincera, a cantora Helena, outra das passageiras a bordo deste cruzeiro.

Há, pois, uma profunda melancolia nesta visão do humano pelo humano, que facilmente se confunde com um sentimento de “empatia” – aquele que, segundo Walter Benjamin, distingue a atitude típica das classes dominantes perante os quadros da História: empatia para com os vencedores, vontade de presentificar e preservar os seus feitos monumentais. Mas o filme de Oliveira escapa a este cliché porque, na sua aparente impassividade, está na verdade a levar os sentimentos até ao fim. Está a pintar a melancolia nas suas cores últimas, fatais, porque, de repente, os vencedores da História surgem como os inexoráveis vencidos da voragem do tempo. Resta-nos o turismo, que não tenta compreender este passado dos Senhores, nem tão-pouco reconstituí-lo; pelo contrário, busca nele a estranheza de um lugar distante, a promessa de exílio para os presentes habitantes de um “mundo unificado” (para utilizar a expressão certeira de Guy Debord).  Resta-nos, pois, o acaso dos monumentos sobreviventes, cuja existência – bem como a das multidões de escravos que deram a vida para os erguer – foi sancionada pelo olhar futuro, humano ou divino. Um Filme Falado fala também sobre esses olhos invisíveis e implacáveis da posteridade, dos quais cremos ter-nos libertado. Se as pirâmides foram feitas por pessoas “civilizadas”, que “acreditavam que havia uma vida para além da morte”, como diz a mãe convertida em guia turística, que barbárie é então a nossa? Não será mais aquela que é (sempre foi) produzida no seio da própria cultura, e que aparecia investida de necessidade e significado – não nos atreveríamos hoje a repetir que “o trabalho liberta”. “Barbárie” não será, de resto, a palavra indicada para designar, na actualidade, as consequências comportamentais de uma vulgar tristeza apocalíptica no pensamento: a certeza de que, façamos o que fizermos, por mais câmaras que os turistas apontem às coisas, por muito que nos espiemos uns aos outros, no fim não estará ninguém a ver – nem Deus, nem a Natureza, nem os “vindouros” que já damos como extintos.

O desfecho inacreditável de Um Filme Falado freeze frame, John Malkovich de olhos postos no que não pode verdadeiramente ser visto, naquilo que “parece um filme” mesmo quando tem lugar no mundo real – não nos consente o lugar do espectador. Nem cúmplices, nem redentores do obsceno. Chegados a esse frame, somos já outra coisa, temos de ser já outra coisa.

Como acontece frequentemente no cinema de Oliveira, somos obrigados a retroceder no filme se quisermos encontrar o final feliz. Pensamos num momento em particular: quando a mãe diz: “Vem, minha filha, vou mostrar-te o Vesúvio e Pompeia”.

Diogo Ferreira

Rear Window (1954) de Alfred Hitchcock

Em Rear Window (1954) talvez seja difícil encontrar aquelas qualidades que André Bazin elogiava no cinema de Orson Welles ou nas obras do neorrealismo italiano: a câmera como um captador do impressionismo da realidade, a profundidade de campo como uma abertura à liberdade do olhar do espectador para que ele possa buscar os seus próprios pontos de interesse no interior de uma imagem.  Hitchcock é um encenador rigoroso capaz de desempenhar um controle absoluto sobre as suas matérias. Dentro de uma obra cujo tema é o voyeurismo, ele coloca com maestria o espectador junto ao olhar do protagonista, fazendo-o participar ativamente das suas dúvidas e elucubrações sobre aquilo que este vê. 

Diante dos olhos do protagonista, L. B. “Jeff” Jefferies (James Stewart), que, devido a uma perna engessada, está confinado a seu apartamento, desfilam uma série de situações da vida cotidiana de seus vizinhos. Aqui, a fugacidade da vida já nasce como encenação, formando uma série de esquetes graciosas que desembocam em uma trama sinistra.  Para um filme que se esforça em representar a banalidade que há no movimento da vida, ele exclui tudo o que ela contém de acidental e de descontrole, e mesmo submetidos a tanta rigidez, por vezes nosso olhar pode fugir do caminho e encontrar outras surpresas. 

Foi reassistindo Rear Window ao longo dos anos que, subitamente, meu olhar  acabou por repousar uma determinada fresta que há nesta maquete milimetricamente construída por Hitchcock. No canto inferior esquerdo do pátio do edifício, além de um pequeno beco, há uma rua e um bar que está sempre bastante cheio. Enquanto a narrativa do suspense se desenvolve através do olhar de Jeff, este fragmento de cenário é habitado por figurantes que desempenham o seu trabalho longe dos holofotes principais: duas crianças brincam na calçada, bêbados confraternizam dentro do bar, táxis amarelos atravessam a rua.

O que acontece naquele fundo tornou-se sedutor justamente porque, pela natureza anônima dos figurantes, quase invisível aos olhos interessados, encontrava-se em seus gestos uma maior liberdade.  Também há o fora de campo.  Dentro do bar há uma aglutinação de pessoas cuja dinâmica, para além dos limites da nossa visão, cria imensas possibilidades de cena; ou mesmo os carros que passam – para onde eles dirigem? Quem os conduz? São lacunas que a imaginação vem a complementar na ficção, mesmo que a despeito dos interesses do realizador.

Não há engano: nunca deixamos de estar sob a geografia e a arquitetura erguida por Hitchcock; os figurantes estão trabalhando tal como James Stewart e Grace Kelly. Porém, suas presenças desvelam uma inquietação: dentro de cada filme há outros habitando junto àqueles profissionais que servem para compor o fundo das cenas. Cabe ao nosso olhar buscá-los. Pode-se revisitar cada obra-prima da história do cinema para o experimento em que deslocaríamos nossa atenção para o que acontece nos fundos de cada cena. Talvez fossem possíveis novas descobertas, olhares, gestos, detalhes que eletrizariam nossa sensibilidade com o sentimento de quem descobre um tesouro escondido.  

Yuri Lins

Nope (2022), de Jordan Peele

Qualquer um dos três filmes realizados pelo norte-americano Jordan Peele poderia ser analisado pela ótica do “espectador ativo”. Um tríptico onde está sempre presente a dinâmica de observador e observado. Em Get Out (2017), o fotógrafo Chris era o centro de atenções de um grupo maníaco de “white people” – uma em específico desejava os seus olhos. Em Us (2019), toda uma comunidade vivia miseravelmente na sombra, condenados a assistir ad aeternum às vidas felizes das suas contrapartes. 

Passemos para Nope, a história de dois irmãos que trabalham na indústria do cinema, não como atores, não à frente da câmara, mas como treinadores de animais. OJ e Em não são vistos pelo público para o qual fazem filmes. Não é por acaso que, na primeira chuva de objectos em Nope, um homem perde a visão: uma moeda rasga-lhe o olho direito. Constitui apenas a primeira de muitas referências ao ato de ver. Não é também acidental que uma das personagens principais do filme seja um diretor de fotografia. A pessoa imediatamente por detrás da câmara. A pessoa que decide o que o público vê – ou deixa de ver.

Peele não só desafia o espectador a encontrar, por entre todas aquelas nuvens, prova de vida sobrenatural, como critica todo o voyeurismo associado à sociedade do espetáculo. Recordemos a citação bíblica que abre o filme: “I will pelt you with filth, treat you with contempt, and make you a spectacle”.

Nope é um filme de câmaras de vigilância, de máquinas fotográficas (tanto digitais, como analógicas), de repórteres fotográficos, de seres que não se deixam ver. Um filme onde repetidamente ouvimos dizer “não olhes diretamente para a criatura” – uma questão de vida ou morte para os personagens, mas não para o espectador. Pelo contrário, Peele parece desafiar o seu público a olhar, olhos nos olhos, o fruto proibido.

Pedro Barriga

Breves notas sobre alguns filmes que apresentam como tema a vigilância

Durante a leitura do artigo da Wikipedia “Lista de filmes que apresentam ‘vigilância’ como tema ou arco narrativo” (o artigo existe aqui) podemos divertir-nos um pouco, relembrando insistências particulares por parte de variados filmes naquela que, podemos agora dizê-lo olhando para trás, se tratou de uma concepção um pouco febril daquilo que podemos englobar, ligeiramente atrapalhados, como o tema da “vigilância em massa”. Um pouco febril e, no entanto, de igual forma, não-despida da naïveté desses largos anos que antecederam uma aceitação muito mais seca de dispositivos muito menos fabulosos. Assim a lista recorda-nos, por exemplo, a cena de The Dark Knight (2008) onde Batman activa um aparelho na sua base que lhe permite “aceder a todos os telemóveis da cidade de Gotham para criar um dispositivo de sonar”; recorda-nos a saga Jason Bourne. Recorda-nos o interessante Death Watch (La Mort en direct) – 1980 – de Bertrand Tavernier, o poderoso Firewall (2006) com Harrison Ford ou Déja Vu (2004) de Tony Scott.

Se nos remetermos ao início alfabético da lista encontramos American Pie (1999), realizado por Paul Weitz e escrito pelo irmão, mas cujas sequelas foram escritas e realizadas por outras pessoas, enfim, não seremos grandemente elucidados pelos negócios labirínticos descritos na Wikipedia, temos presente no entanto uma importante cena com o tema vigilância – e confere:

No filme, após uma agradável festa na casa de Stifler, Jim (Jason Biggs, que viria realmente a brilhar em Anything Else (2003) Woody Allen uns anos mais tarde) desenvolve com energia uma atração por Nadia, a estudante de intercâmbio da Checoslováquia, muito apoiado pelos amigos. Esta atracção é aparentemente retribuída quando Nadia se convida para ir estudar à casa de Jim uma tarde, com a advertência de que estaria a vir dos treinos desportivos e que por isso teria de trocar de roupa lá em casa. A Jim e aos amigos, na biblioteca da escola, surge a ideia de efectuar uma “transmissão pela Internet” de Nadia em sua casa, e este usa a webcam do seu computador para, de monitor desligado, estar a filmar a colega sem ela saber, enviando as imagens em directo para os outros. Todos, nas suas próprias casas (incluindo Jim, que corre para a vivenda de um amigo para poder “chegar a tempo de ver”) assistem ao desaparecimento da roupa de Nadia e ao seu à-vontade no quarto, fazendo com que Finch, sentado com Jim em casa, afirme – “Deus abençoe a Internet.”

Podemos continuar a descer, apesar das lacunas significativas que começo a notar na tabela – falta, por exemplo I Spy (Eu Sou o Espião, em português), de 2002, realizado por Betty Thomas, com Owen Wilson e Eddie Murphy, uma comédia de acção que envolve a certo ponto lentes de contacto que, convexas, são capazes de filmar. Alguns anos para a frente, dou por mim a seleccionar um troço em particular, sem grande motivo para além de indecisas disposições afectivas em relação a um jovem actor que nessa altura se tornara cabeça de cartaz. Estávamos em meados da década de 2000, e o realizador D.J. Caruso e o produtor Steven Spielberg procuravam alguém para protagonizar Disturbia, um guião antigo que circulava numa gaveta, espécie de Janela Indiscreta em torno de um rapaz em prisão domiciliária forçado a passar o tempo com a observação que manteria às casas dos vizinhos. É Shia LaBeouf o escolhido, e é ele quem Caruso volta a chamar para Eagle Eye no ano seguinte, um filme também sobre LaBeouf a ver ou a ser visto, neste caso por uma vaga ameaça governamental e omnividente que o interpela a cumprir misteriosas ordens. A este duo tomaria a liberdade de acrescentar outro, Wall Street: Money Never Sleeps, a estranha novela de Oliver Stone, um terceiro filme sobre ver e ser visto, e um terceiro protagonismo de Shia.

Disturbia (2007) de D.J. Caruso
Eagle Eye (2008) de D.J. Caruso
Wall Street : Money Never Sleeps (2010) de Oliver Stone

É preciso compreender a força destes sucessivos castings e de uma presença icónica do esforçado actor nas salas de cinema no virar da primeira década: a aquisição por parte do próprio Spielberg de LaBeouf para Indiana Jones and the Kingdom of the Crystal Skull (2008) e, é claro, os monumentais filmes da primeira trilogia Transformers de Michael Bay que alicerçariam toda a ascensão transformativa que catapultou o rapaz de vinte e poucos anos para uma fama cujas consequências psíquicas poderiam ser estudadas, num outro ensaio, do género “Mente de um Autor”, tendo em conta os notáveis movimentos de recuo e de atracções que procurou na sua obra com os anos que se seguiram, movimentos de igual forma em permanente jogo e relação com a sua visibilidade: o saco de papel na cabeça em Berlim 2014, as múltiplas performances subversivas em espaço museológico, a série de livestreams anti-trumpistas em 2017, para citar alguns exemplos.

Eagle Eye inicia-se com uma cena dentro de um comboio: Shia LaBeouf é Jerry, um empregado de uma loja de fotocopiadoras, inteligente mas com pouca sorte na vida. Num televisor, ouvimos as notícias, numa cena hoje hilariante que é executada no filme com total seriedade: “Utilizadores de telemóveis, tenham cuidado” – alerta a pivô de telejornal – “ O FBI consegue ouvir tudo aquilo que dizem, até quando têm o telefone desligado. As autoridades são agora capazes de activar o microfone no interior dos telemóveis…” os transeuntes ocupam-se, distraídos com a viagem. Estávamos, na vida real, numa altura complicada. Há já alguns anos que o sorriso da Mona Lisa vigiava as estantes de todas as casas, em Portugal e pelo mundo, fruto das sucessivas edições de O Código Da Vinci. Os truthers do 11 de Setembro lançavam o documentário Loose Change, que seria a importante pièce de résistance dos movimentos conspiracionistas desta fase da história humana, analisando em detalhe o impacto dos aviões nas torres e no Pentágono. À noite, em salas de estar com as luzes apagadas, pais assistiam sozinhos com a televisão, depois dos filhos irem para a cama, a emissões nocturnas de séries longo-formato de investigação criminal, menos interessadas em espectrómetros de massa do que em grandes monitores de capacidade “infinitamente regressiva” da imagem, usados para poder ampliar múltiplas vezes a fotografia encoberta de um criminoso, para lá de qualquer artefacto, até obter o reflexo do seu cúmplice na superfície da córnea de um olho, capturados pela câmara de vigilância de uma estação de serviço. A paranóia estava, e nunca desde aí deixou de estar, na ordem do dia.

Fonte: OLX;

Jerry, no filme, é informado da morte do irmão, militar da Marinha numa missão altamente secreta, começando depois a receber chamadas de uma voz robótica que parece estar sempre a vê-lo, e que consegue à sua volta controlar tudo. “Jerry, saia pela porta à sua esquerda”, “Jerry, entre no autocarro com a sua mala daqui a exactamente vinte e três minutos”; a voz encaminha-o a ele, e mais tarde a uma companheira feminina por sucessivas ordens inescapáveis: não só consegue comandar os semáforos de trânsito e todos os ecrãs do mundo como telefona a Jerry de qualquer aparelho possível (telefones públicos, telemóveis de estranhos), por mais que este se tente livrar dos pequenos dispositivos. Na segunda metade, tudo nos é revelado, e sabemos agora que a críptica voz, com comprovadas intenções sencientes, além de terroristas, habita um corpo num sigiloso projecto governamental, residente em caves por baixo do centro nevrálgico do Departamento de Defesa americano: um corpo longo, esférico, suportado por um braço mecânico que move a seu bel-prazer por entre inúmeras “esferas douradas” que lhe enviam “dados infravermelhos”. Este é o seu reino, a sua sala do trono, faustosa e recôndita, escondida dos olhares humanos.

American Pie (1999) de Paul Weitz
Eagle Eye (2008) de D.J. Caruso

Rafael Fonseca