‘Armageddon Time’ – voltar a casa

Miguel AllenNovembro 16, 2022

A lotta people won’t get no supper tonight

A lotta people won’t get no justice tonight

The battle is gettin’ hotter

In this iration, Armagideon time

Willie Williams

 

Crescer e descobrir que o mundo é muito maior do que aquilo que pensávamos, e muito mais assustador. Tentar compreender quem somos quando o que sempre nos parecera familiar se revela subitamente estranho e dissonante. Após uma sequência de filmes de enredo e geografia progressivamente mais ambiciosos e surpreendentes, James Gray regressa a casa. Apesar do título apocalítico, em Armageddon Time, Gray deixa a selva amazónica profunda (The Lost City of Z, 2016), ou o sistema solar, do planeta Terra até Neptuno (Ad Astra, 2019), para evocar o Queens da sua juventude, nos anos 80. O realizador filma os Estados Unidos em vésperas da primeira eleição de Ronald Reagan (presidente de 1981 a 1989), como um país dividido, de injustiças e desigualdades profundas, cuja complexidade social é consonante ainda com a realidade de hoje. Este retrato é orientado sobre Paul Graff (Banks Repeta), jovem de 11 anos, de família judia originária do leste da Europa, imagem de Gray (“Graff”), que evoca as experiências pessoais do realizador na tela.

Uma Nova Iorque impressionista à descoberta, íntima e sensível: “disco sucks”, Sugarhill Gang e the Raincoats, Queens e Manhattan, Guggenheim Museum, sonhar com Kandinsky com os olhos no espaço, e correr divertidamente pelo Central Park. O lar e a família, e um universo grande e complexo que se abre à porta de casa. Paul conhecerá a sociedade a partir de duas realidades distintas que lhe são oferecidas: uma problemática escola pública, inclusiva mas profundamente discriminatória, e uma escola privada, elitista, competitiva, e agressiva, mas onde a sua voz parece finalmente existir. 

É na escola pública que Paul encontra Johnny (Jaylin Webb), afro-americano, seu companheiro de desventuras com quem faz “les quatre-cents coups“, que lhe mostrará um mundo mais amplo, rico em novas experiências e novas ideias, composto por realidades muito diversas por ventura injustas. Será na escola privada que Paul compreenderá que a sociedade é estratificada e discriminatória, que nem todos têm direito a um lugar na mesa grande. Uma coming-of-age story, o despertar duma consciência – o nome judeu, “white privilege”, e “white guilt”.

Gray utilizará o tempo conflitual do filme para traçar dois paralelos históricos importantes. A América “racista” de Reagan é aqui primeiramente enquadrada pelas injustiças causadas aos judeus na Europa de Leste nos começos do século XX – relatadas pelo avô de Paul, e herança real da família do realizador. Por outro lado, uma aproximação à América de hoje, a “América de Trump”, será feita pela presença de Fred e Maryanne Trump (respectivamente pai e irmã do ex-presidente) enquanto mecenas e guias da escola privada, elitista, e de tendências sectárias, pela qual enveredará Paul – história real do passado de Gray, que frequentou Kew-Forest school, como Donald Trump. Neste contexto, a família de Paul mostrar-se-á manifestamente contra a eleição de Reagan, e evocará também um passado de descriminação pelas suas origens, mas ocupará, ao mesmo tempo, um lugar preciso no “sistema” que estratifica racialmente a sociedade, evidenciando inclusive francos preconceitos para com os afro-americanos. Em tempos difíceis, “you make the most of your break and do not look back, (…) be thankful when you’re given a leg up.

Um filme delicado e sensível, Armageddon Time não seguirá contudo uma narrativa particularmente inspirada. A trama é pouco original, e o filme passeia-se por alguns lugares comuns, escondendo por vezes as suas fragilidades narrativas por detrás das imagens cuidadas de Gray. A primeira metade é disso evidente, e o filme parece demorar algum tempo até encontrar ou mostrar a sua voz. Em paralelo, por muito comovente e terna que seja a relação de Paul com o seu avô (Anthony Hopkins), os diálogos evocativos, as interações entre os dois, são um pouco previsíveis, perdendo assim alguma da sua força – de referir também que o filme não beneficia da “grande” performance de Hopkins, cuja presença em cena é relativamente distrativa pela notória herança cinematográfica que transporta. O comentário será talvez desmesurado, mas é francamente curioso que um filme (que se quis) tão pessoal nos pareça a tempos tão genérico. 

É possível sustentar também que o tema da injustiça racial é aqui exposto duma perspectiva particularmente “branca”, com a existência de Johnny a ser tratada de forma bem menos elaborada (bem menos pessoal) do que a de Paul, o único centro moral possível do filme. Gray refere a inspiração de obras como Killer Of Sheep (Charles Burnett, 1978) mas a sua influência não será francamente clara no filme, até porque as condições de vida de Johnny não constituem que breves planos, meros vislumbres, em contraste com o conflito detalhado e rico da vida familiar de Paul. No entanto, a ideia não terá sido aqui tanto de retratar o racismo sistémico da sociedade americana, mas sobretudo mostrar essa injustiça aos olhos de uma criança (relativamente) privilegiada – o viver com essa injustiça e o agir perante essa injustiça, quando esta é orientada sobre o “outro”.

Mas se Armageddon Time é um filme cuja “sinceridade” moral nos parece, em certas ocasiões, algo redundante, Gray compensa essas eventuais lacunas pela franca dedicação que oferece aos seus personagens, pela generosidade e interesse que demonstra nos seus retratos, pela afeição que lhes dedica. Pouco audaz, ou mesmo académico, o “realismo doce” de Gray será consideravelmente superior ao que a generalidade do cinema contemporâneo nos oferece – obra de alguém que consegue posicionar-se relativamente à história da arte; alguém que compreende efectivamente o que é um plano, para que serve um enquadramento, como tratar a sua duração. Daí que Armageddon Time seja um evento essencial no annus horribilis cinematográfico de 2022. Um filme “vivido”, com um final fortíssimo. Recordar e reconstruir a realidade do passado, a partir dum núcleo familiar específico. Retratar um país a partir dum regresso a casa.

 

There ain’t no need for ya

Go straight to hell boys

Miguel Allen