Alma Viva – “Foi Ela Que Matou as Galinhas. A Garota Tem o Diabo no Corpo!”

Esta crítica contém spoilers

1 de Novembro de 2022. Dia de Todos os Santos. O dia em que assistimos à antestreia de Alma Viva no Alto Minho, em Viana do Castelo. Neste dia em que a cidade se encerra sobre si mesma para prestar homenagem aos mortos, Alma Viva incorpora os vivos com espíritos e mezinhas, transbordando transcendência e misticismo por toda a audiência.

É na presença da realizadora Cristèle Alves Meira que nos são transmitidos alguns factos e curiosidades relativamente a esta coprodução franco-luso-belga. Ficamos a saber que decorrem sete anos desde o início do projecto e, acima de tudo, que o papel de Salomé nunca foi pensado para a filha da realizadora, a jovem actriz Lua Michel. No entanto, nos créditos finais, todos lhe agradecem a interpretação cuidada, irrepreensível e, sobretudo, genuína. Por outro lado, Cristèle conta-nos que é filha de pai Vianense e de mãe Transmontana, e que traz sempre consigo a representação de milhares de luso-descendentes fortemente conectados com o país de origem dos pais, que procuram incessantemente o seu conceito de identidade mas também o reencontro com uma nunca-verdadeiramente-alcançada sensação de familiaridade e pertença. Por isto, Cristèle faz de Alma Viva, a representação espiritual desta ligação dos luso-descendentes a Portugal, conexão esta que é muito mais do que física, é fortemente emocional.

Retornando então à aldeia materna da avó de Cristèle, sim materna, porque este é um filme de mulheres e sobre mulheres. É nesta pequena aldeia de Trás-os-Montes, onde o filme é rodado, que a rusticidade abordada na narrativa nos transporta para um mundo sobrenatural e fortemente influenciado pela crença, pelo poder da mente e pela força espiritual. Alma Viva é um filme sobre o peso que uma matriarca tem numa família dividida entre os que estão e os que deixaram de estar. Os que ficaram na terra e os que partiram para a França antiga, dos sonhos e do sucesso financeiro. “Mãe, mamã, mãezinha“, é o murmúrio e a lamentação que se ouve ao longo da narrativa. Desta forma, a realizadora prolonga a morte da matriarca, utilizando-a de uma forma perversa, de modo a, desde cedo, introduzir as complexas temáticas do oculto.

Alma Viva é o filme que retrata a avó que só reencontra a neta no Verão e é também o filme que nos mostra a avó morrer numa noite de Agosto, acreditando ter sido encurralada pelos preparados culinários de uma vizinha que a difama por terem partilhado o mesmo marido. E nem no leito da morte está livre de injúrias. É a partir daqui que a neta Salomé, que antes acompanhava a avó nas preces aos mortos, irá perpetuar o seu legado. Lua Michel assume a interpretação de uma forma tão natural e realista que, muitas vezes, faz-nos confundir a ficção com a realidade.

O espectador é, com efeito, encurralado numa atmosfera sobrenatural, sendo a acção filmada numa luz minimalista e sombria. Ao morrer, o espírito da avó agrega-se ao de Salomé. A aldeia torna-se um lugar de suspeita e vingança, perfazendo-se o rastilho que acende o fogo e traz consigo o medo. No ecrã dá-se foco às chamas que rapidamente nos trazem à memória o Bostofrio de Paulo Carneiro e os cenários dantescos provocados pelas labaredas nos campos transmontanos.

Não é só pela forma mórbida e sórdida como são abordadas as temáticas esotéricas, mas particularmente pela forma sem tabus como Cristèle capta momentos que todos nós já imaginámos, mas que quase ninguém tem a coragem de verbalizar. Com efeito, o retardar das cerimónias fúnebres da matriarca não se deve somente à discussão de quem deve contribuir para a compra da lápide, mas sim de quem investirá monetariamente para a perpetuação da memória desta líder familiar. Interessante como nesta abordagem a questão nunca será quem paga o caixão, mas sim quem se responsabilizará pelo seu jazigo e, consequentemente, pela permanência da sua alma.

Dos feitiços às rezas, passando pelas bruxarias e pela invocação de São Jorge e terminando na reincarnação de espíritos, Alma Viva coloca em cima da mesa as famílias danificadas e afastadas pela emigração, os avós que vivem longe dos netos, as quezílias das vizinhas e a maledicência da aldeia. Resumindo, é também um filme mundano, no qual a inveja e a mesquinhez definem desígnios humanos. Mais do que o oculto, a bruxaria tem na sua representatividade física a crueldade dos dias de quem vive lado a lado com o inimigo. Alma Viva consegue então reproduzir também o espírito rural, ou seja, a mentalidade de quem vive num espaço ínfimo e de quem precisa de zombaria e maldizer para se entreter.

Sintetizando, o nível técnico e cinematográfico deste filme é elevado e apresenta uma capacidade irrepreensível de transmitir aquilo que é ser Português (mérito também para Rui Poças pela sua fotografia). A estética aldeã está presente de uma forma bastante sedutora, remetendo-nos para a paisagem, para as pessoas, os dizeres, o guarda-roupa e até mesmo o sotaque transmontano que Ana Padrão nos entrega de forma louvável. Tudo isto faz-nos crer que estamos a vivenciar uma tórrida e típica romaria do mês de Agosto com laivos mexicanos de Dia de Los Muertos. E sim, sabemos que tórrida e romaria são termos que não comungam, mas com Cristèle tudo é possível.

Tal como Tiago Guedes fez em Restos do Vento, também aqui, as máscaras têm um significado que confronta a tradição com aquilo que já não faz sentido. E as máscaras não são as do refúgio identitário, mas sim a máscara enquanto objecto de disfarce de algo que não se é. Contudo, Alma Viva não se limita a ser somente um filme representativo e de caracterização, ele também nos envolve numa aura de sarcasmo, crenças e superstições. Num jogo bastante activo entre o amor e o ódio, a mensagem foca-se na presença e na ausência física dos humanos e, principalmente, na forma como devemos alimentar a alma. De preferência, sem peixe amanhado pela vizinha do lado.

Sessão Antestreia de Alma Viva – no Cineplace Estação Viana
Cristèle Alves Meira na Sessão de Antestreia de Alma Viva – no Cineplace Estação Viana
Lua Michel, a jovem actriz que interpreta Salomé

 

Rita Cadima de Oliveira