Ainda Estou Aqui, de Walter Salles: Resistência de Trazer por Casa

André Filipe AntunesJaneiro 21, 2025

No seu livro de memórias sobre a difícil convivência que manteve com Stanley Kubrick, o escritor e argumentista Frederick Raphael revelou a visão do cineasta no que ao filme A Lista de Schindler diz respeito:

O Holocausto é sobre 6 milhões de pessoas que morreram. A Lista de Schindler é sobre 600 que sobrevivem”.

A crítica, possivelmente apócrifa — Kubrick e Spielberg eram amigos e o primeiro terá engavetado o seu projeto sobre a máquina de morte dos Nazis após ter visto o filme do segundo — acabou por persistir às tentativas de averiguação da sua verdade histórica porque, de certa forma, penetra numa verdade nuclear do cinema de Spielberg: a de que os seus filmes, independentemente da seriedade temática, nunca deixam de ser exercícios bem-comportados, visões inocentemente otimistas sobre os cantos mais negros da história humana, que nivelam (os mais críticos dirão até que “esterilizam”) as sombras em prol de um impulso populista de satisfazer as massas. Que, no fundo, não deixam que a verdade se sobreponha a uma boa história.

 

*o texto que se segue contém spoilers

Sentimos algo de semelhante a ver Ainda Estou Aqui. A mais recente produção de Walter Salles é uma visão palatável e digerível dos horrores da ditadura militar do Brasil, que terá resultado num número indeterminado de dissidentes políticos mortos e desaparecidos. O filme, baseado no livro de memórias do autor Marcelo Rubens Paiva, é sobre uma família que sobrevive, e que, liderada pela sua matriarca, Eunice Paiva (Fernanda Torres), procura durante décadas o reconhecimento e responsabilização do Estado brasileiro pela morte de Rubens Paiva (pai), engenheiro civil, deputado e ativista político, que num dia normal de 1970 é levado de sua casa pelos militares para nunca mais ser visto. Luta que só terminaria em 1995, já dentro do período democrático, com o aparelho burocrático a emitir uma certidão de óbito a confirmar legalmente a morte de Paiva, cujo corpo nunca foi encontrado.

É justamente de cinema burocrático que falamos. Burocrático, por oposição a político, porque o verdadeiro cinema político tem, forçosamente, de ser de algum modo incomodativo. Não tanto ao nível dos seus meios de produção, o que aqui seria sempre uma impossibilidade (Walter Salles é um dos homens mais ricos do Brasil, ligado a uma família histórica de banqueiros, políticos e industriais, e cuja fortuna está avaliada em mais de 4 mil milhões de euros), mas das suas ideias, do seu conteúdo, de uma vontade de abanar as estruturas de poder vigentes.

Não é o caso: Ainda Estou Aqui tornou-se um dos maiores sucessos comerciais dos últimos anos no Brasil, foi exportado internacionalmente pelas indústrias culturais do “cinema de prestígio” e, à boleia de uma grande atriz e de uma temática “atual” e “pertinente”, foi impulsionado na direção de Hollywood e dos Óscares, onde se espera que seja nomeado para Melhor Filme Internacional e que Fernanda Torres siga os passos da mãe, Fernanda Montenegro, e se torne na segunda atriz brasileira da história nomeada para a estatueta de Melhor Atriz Principal.

Poder-se-á pensar que estamos perante uma obra “vítima do próprio sucesso”, cuja mensagem acaba neutralizada pela sua comodificação enquanto produto cultural e por uma espécie de “memetização” do seu rosto central (as t-shirts de Che Guevara que o digam). Acontece, no entanto, que esse trabalho não é produto da máquina de marketing da época de prémios; está codificada na própria matriz do filme e explica o racional para decisões à primeira vista estranhas, mas que acabam por se revelar evidentes.

Que outra explicação tem a beatificação e simplificação da personagem de Eunice Paiva, cuja personalidade fria e distante é um elemento central no retrato biográfico do filho? Ou a presença periférica de Zézé (Pri Helena), a empregada que só existe para chorar o calvário dos patrões e cuidar das crianças (e que desaparece por completo, a certa altura, quando Eunice deixa de lhe conseguir pagar)? Até a falta de questionamento de Rubens Paiva e seus amigos e aliados, membros da classe média-alta influente do Rio de Janeiro, sobre se podiam fazer mais para combater o regime, ou a insistência de que a prisão de Rubens é tão mais injusta porque este “não estava envolvido com os terroristas” anti-ditadura (o que nem sequer é verdade à luz dos factos) não é, como já se escreveu, um esforço para branquear a história e sanear a imagem da extrema-esquerda; antes é uma tentativa de condenar os “excessos” revolucionários e proteger a imagem da esquerda-caviar.

É precisamente nos momentos em que Ainda Estou Aqui abandona as pretensões de ativismo de fim-de-semana, em busca de algo mais pessoal e subtil, que o filme se eleva. Para isso, muito deve Walter Salles à presença de Fernanda Torres, uma verdadeira âncora narrativa, que faz merecer por inteiro os elogios e reconhecimento internacional que tem tido. É sobretudo nos momentos mais silenciosos, nos olhares inconspícuos e nas sequências sem diálogo que Torres devolve a Eunice alguma da profundidade que o argumento lhe retira, quando a atriz afirma a “resistência silenciosa” como uma arma verdadeiramente poderosa perante os poderes que a oprimem.

Do mesmo modo, são os pequenos atos que mais nos prendem a atenção, e é neles que Salles mais se aproxima da ideia de uma “escavação da memória”, central no livro (e aqui só ocasionalmente revisitada). Rubens Paiva pode ter desaparecido, mas a sua memória perdura porque a memória está em todo o lado: no cheiro do escritório, na camisa que oferece à filha, na caixa de cartão com um último fósforo solitário. Não é por acaso que, no epílogo, uma das filhas de Eunice, já crescida, confessa que fez o luto do pai no dia em que a família abandona a casa do Rio para se estabelecer em São Paulo.

É também no epílogo que essa ideia, de uma memória partilhada entre as gerações, é literalizada de forma pouco subtil, mas inegavelmente tocante. Quem já viu algum material promocional terá uma ideia da escolha feita pelo cineasta – escolha que de resto tem sido uma peça fundamental no puzzle da “campanha” de Fernanda Torres para os Óscares. Para aqueles que não sabem do que se trata, diremos apenas que se trata de uma poderosa reflexão sobre a fronteira entre cinema e vida real, e a assunção e aceitação de um legado artístico, mas também pessoal.

É sobretudo isso que fica quando rolam os créditos. Esse apelo à família e à memória, e não, como Walter Salles decerto pretenderia, qualquer mensagem política que não escapa ao consenso e ao cliché. De facto, pode dizer-se que não há melhor resumo para Ainda Estou Aqui do que uma sequência inicial do filme, filmada com câmaras Super 8 e ritmada ao som de rock brasileiro de época: esteticamente apropriado, mas vazio de significado; o filme político como produto de exportação, a resistência como postal turístico.

André Filipe Antunes