Aftersun: Felicidade como Máscara da Tristeza

A tristeza usa várias máscaras. Por vezes é visível, mas muitas vezes é invisível a qualquer olhar. É mais triste aquele que sorri sempre ou quem nunca demonstra felicidade? É mais feliz aquele que mais se queixa ou quem vive sem queixumes? Para os sentimentos não existem gavetas, não existem explicações lógicas nem directas e é neste contexto que Aftersun, o novo filme da escocesa Charlotte Wells, se desenrola.

Os primeiros minutos de Aftersun são simples de entender, mas no fundo a realizadora está a enganar o espectador, ou simplesmente a mascarar a tristeza de uma outra coisa. Charlotte Wells joga com os sentimentos como um qualquer Deus do seu próprio universo. Quando necessário levanta um pouco do véu e mostra-nos o que os dois personagens principais estão a sentir, mas sem mostrar demasiado. Contudo, Aftersun começa de forma oposta, sem jogos de sentimentos, apenas com sequências de felicidade entre um pai e a sua filha, ou neste caso entre a filha e o seu pai, já que a perspectiva principal deste filme é transmitida através da personagem de Sophie (Frankie Corio).

Através de um tom algo documental, entre um jogo de memória e sentimentos, Aftersun demonstra-nos uma memória especifica de Sophie, umas férias num resort low cost na Turquia com o seu pai. Estas memórias são, na realidade, o tempo presente de grande parte do filme. Durante cerca de 45 minutos assistimos a uma relação que é mais do que pai-filha, que entra no campo da amizade, não só pela reduzida diferença de idades de Sophie e Calum (Paul Mescal), mas também pela maturidade da mesma. E durante esses 45 minutos somos felizes, falsamente felizes, embora ainda não o saibamos, assim como Sophie e Calum, embora eles já o saibam.

Para Calum este é um momento raro em que pode estar vinte e quatro horas com a sua filha, já que está separado da mãe de Sophie e é ela que tem a sua guarda. Para Sophie este momento é idêntico, embora a sua noção temporal seja obviamente diferente. Para uma rapariga de 11 anos, separada do pai, estas férias simbolizam mais do que apenas um bom momento. Significam uma oportunidade de construírem algo juntos, de ultrapassarem problemas e medos. Sophie demonstra muito mais maturidade do que a idade pode apontar, algo que é visível em determinados momentos ao longo do filme, como a relação com outros personagens, conversas com o próprio pai e atitude em geral.

Contudo, estas férias em família, aparentemente felizes guardam alguma escuridão, embora isso não seja retratado de forma directa. Charlotte Wells não procura a lágrima fácil, ou o drama a la Hollywood. Através de pequenos momentos algo surreais, detalhes corporais e a verdadeira linha temporal do filme (cerca de 20 anos depois deste momento, onde Sophie vive com a namorada e filha), descobrimos que a viagem de Calum ao longo da sua vida não tem sido nada fácil e que o personagem se questiona constantemente sobre o suicídio e a sua razão para viver. A sua razão de viver é simples, Sophie, mas quando Sophie sai do seu universo, a sua vida deixa de fazer sentido. Esses momentos de depressão são subtis, mas fáceis de entender: O momento em que Sophie diz que o pai só lhe promete coisas que não consegue pagar e a reacção de Calum após esse momento; os momentos meio surreais em que Calum está a dançar; a conversa de Calum sobre a sua juventude e como os seus pais se esqueceram do seu 11º aniversário; os diversos planos solitários em Calum, onde este se encontra quase sempre triste ou pensativo.

Há uma profunda tristeza em Aftersun que é apenas descoberta em pequenos momentos e através de uma melancolia mascarada de felicidade. É neste “truque” que Charlotte Wells brilha, ao ser capaz de criar um drama dentro de um momento particularmente feliz, sem que tenhamos a completa noção do que se passa, da raiz do problema.

São vários os momentos de tristeza por parte de Calum, mas a cena final é a mais impactante. Quando Calum deixa Sophie no aeroporto, para regressar a casa da sua mãe na Escócia, Calum percorre um corredor até abrir uma porta imersa em escuridão. Nessa porta está uma festa, a mesma festa onde vimos Calum dançar intermitentemente, a porta para a sua depressão, para os seus medos e problemas. Uma porta do qual provavelmente nunca mais saiu.

Quanto a tudo o resto, Aftersun brilha bem alto. Frankie Corio, que tem aqui a sua primeira experiência séria no mundo da representação, é a estrela do filme. A sua interpretação natural de Sophie acrescenta um poder dramático especial. Quase parece que estamos a ver um documentário real, que esta personagem existe no nosso mundo. Paul Mescal é outro actor especial, como já o demonstrou na aclamada série Normal People. Embora não seja um actor de personalidade forte, a sua naturalidade dá-lhe qualidade.

Aftersun é um filme complexo, mascarado de algo simples. É um filme sobre o momento, sobre a felicidade num certo local e tempo, algo que fica na nossa memória para sempre, mas que esse tempo procurará alterar ao misturar o passado e presente. É nessa magia de tornar algo complexo em simples que Charlotte Wells brilha, criando um filme comovente intelectualmente.

João Fernandes