Accattone, primeiro longa-metragem de Pier Paolo Pasolini, é um filme sobre a busca pela paz, mas o que impulsiona e orienta a narrativa é a morte. Isso porque a morte surge como fantasia, um sonho para os personagens, especialmente o que dá nome ao filme, interpretado brilhantemente por Franco Citti. Só na morte, ao católico, a paz é garantida.
Ainda na primeira cena do filme descobrimos que um membro do grupo de Accattone – constituído por pequenos ladrões, chulos, vigaristas e prostitutas – morre após uma aposta onde ele deveria atravessar o rio depois de comer um quilo de massa e um cesto de caquis. A morte é quase cômica, e modulada a partir da busca pela atenção – a vontade de ser visto.
É nesse tom que o protagonista aceita o desafio de se jogar de uma ponte – com todo o seu ouro, “como os faraós”, ele berra. A ponte é no centro da cidade porque morrendo na periferia, ele, enquanto um rapaz proletário, não viraria notícia. A vontade de ser visto, lembrado, é central. E a morte figura como um veículo não só para escapar entre os dedos da vida sofrida que ele é condenado a viver, mas uma forma de marcar sua existência no mundo: um suicídio publico, onde sua vida, mesmo que marcada pela morte, seria publicada, repercutida. O salto não dá em nada, “nem o rio quer Accattone”, diz Sérgio Alpendre.
Pasolini expressa solidariedade com o personagem de Citti e seu grupo, apesar de viverem da exploração cínica de mulheres e de pequenos golpes. Para o diretor, a vida deles é uma miséria inescapável, condicionada pelas condições materiais de se viver no capitalismo enquanto pobres marginalizados. O que resta é esperar calmamente pela morte? Que se antecipe a morte de maneira chamativa, uma revolta absurdista.
É mais fácil imaginar o fim do mundo que o fim do capitalismo, assim como é mais fácil imaginar o fim da vida que nela ascender socialmente. A morte se disfarça de fuga quando fugir parece o único caminho.
“Bendito o dia de meu nascimento”, diz em tom de brincadeira um dos amigos de Accattone antes de planejarem um roubo já no final do filme. O roubo é ridículo, um furto a um caminhão de mortadela. Eles são alcançados pela polícia, e Accattone tenta fugir, roubando uma moto. O tom cômico se acentua quando os policiais nem tentam perseguir o protagonista: “Para quê fugir? Nós conhecemos você!”.
Eis que acontece o que é antecipado desde o princípio. Accattone, de forma pitoresca, se acidenta com a moto roubada. A maneira como isso é mostrado pelo filme torna tudo ainda mais miserável: Pasolini não mostra o acidente, apenas o som que ele causa. O ato final de uma vida apagada não é a atenção das notícias, nem mesmo o filme o mostra. Nem a morte é piedosa com Accatone.
“Ah, agora eu estou bem”, é a última frase do personagem que dá nome ao filme, antes de sua morte. Com as mãos algemadas, ainda – literalmente – preso à vida que foi condenado, um amigo faz um sinal da cruz. Quem sabe um dia ele, o algemado, encontre essa paz.
* A primeira crítica da impremeditada série sobre morte no cinema está aqui.