‘A Vida de uma Mulher’ – Ciclo Mestres Japoneses Desconhecidos

A Vida de uma Mulher, de Yasuzō Masumura, integra a programação do Ciclo de Mestres Japoneses Desconhecidos que está em exibição desde dia 3 de Novembro no Cinema City de Alvalade, em Lisboa.

Este artigo contém spoilers.

A Vida de uma Mulher pinta o retrato de um país personificado no arco narrativo de Kei, a protagonista do filme, interpretada pela mizoguchiana Machiko Kyō. Como as melhores obras onde o contexto informa o destino dos personagens, sem os vergar aos desígnios do realizador – Christian Petzold vem à memória, como exemplo contemporâneo -, o filme de Yasuzō Masumura desenvolve habilmente o seu melodrama, que funcionaria perfeitamente com outro pano de fundo que não a história do Japão na primeira metade do século XX.

E assim iniciamos, sempre junto a Kei, jovem órfã de 18 anos que vive indesejada na casa dos tios de classe baixa. Masumura apresenta-nos esta realidade logo nos primeiros instantes do filme, conseguindo, economicamente, que o espectador se conecte com as dores da protagonista. Por fim escorraçada do lar inóspito, Kei vagueia pelas ruas da cidade com destino incerto. Deparando-se com o portão de uma casa aberto, aproxima-se, tomada pela curiosidade. Lá dentro, descobre a casa de uma abastada família que, após naturais constrangimentos iniciais, acaba por acolhe-la, primeiro como empregada doméstica e, mais tarde, como membro de direito.

Estão lançados os dados do primeiro ato do filme, uma ascensão da tempestade à bonança que é então bruscamente interrompida. Um pente inicialmente “furtado”, depois oferecido e por fim partido assinala o início de um novo rumo para Kei, progressivamente dissociado dos seus princípios, vontades e convicções, que a levaram um dia a ter o carinho de (quase) todos os membros da família. O peso da dívida de gratidão leva-a a aceitar a sugestão da matriarca, desposando o seu primogénito e assumindo o controlo dos negócios da família.

O filme vai sendo pontuado por elipses materializadas em capas de jornais da época, ilustrando o destino do Japão e assinalando a passagem do tempo que nos leva, aos repelões, vários anos em diante. Reencontramos os personagens envelhecidos, alheios aos acontecimentos que os levaram de um determinado ponto ao seguinte. A câmara de Masumura detém-se nos rostos paulatinamente desgastados pelo tempo. A desintegração da identidade de Kei encontra paralelo com a ocidentalização do país, várias vezes aludida no filme, em função do lucro e em detrimento dos costumes e tradições nacionais.

No final sobra a devastação. De Kei, que termina o filme sozinha, e do Japão, arrasado pela II Guerra Mundial. O arco do portão que Kei atravessou no início do filme, surge agora rodeado por ruínas. Como símbolo de um passado que já não volta, de uma dádiva amaldiçoada, da fatalidade do destino. Mas simultaneamente como réstia de esperança, réstia de humanidade, réstia de amor. Que subsistem. Cercadas pelo caos e devastação. No meio dos escombros. A vida de uma mulher e o destino de uma nação. 

 

Bruno Victorino