A Tragédia do Bushido, de Eitaro Morikawa (Ciclo Mestres Japoneses Desconhecidos III)

As profecias dão a premissa da ação em algumas tragédias gregas, mas não a encerram, ou seja, o móbil da peça não é o que foi profetizado. O papel da profecia está mais próximo do da leitura da realidade. Exemplificando, Prometeu está certo de que o reinado de Zeus acabará porque entendeu a natureza do poder. Ao recusar ser corrompido pelas ameaças do Deus dos céus, Prometeu demonstra um outro tipo de poder. Acresce que a partilha do fogo com o Homem, o crime de Prometeu, é também ele um exercício de poder. O poder absoluto destrói e enlouquece o seu detentor, a diferença entre o titã e o Deus reside no entendimento disto. É, pois, interessante que os gregos tivessem na figura do condenado o melhor intérprete do tempo.

“A Tragédia do Bushido”, único filme de Eitaro Morikawa, tem a profecia na forma de uma sentença. A morte de um grande senhor japonês dita que um samurai se tenha de suicidar para fazer cumprir um ritual do século XVII, de modo que o defunto tenha companhia na morte. A sentença decorre de uma tradição, com a escolha a recair num jovem de dezasseis anos. Temos assim apresentado o conflito entre o passado e o presente, que, usando as palavras de Rohmer sobre “Bigger than Life”, servirá de catalisador e não como origem dos males que se seguem.

A combinação da tradição (espaço) e do íntimo (temporal) enuncia o drama familiar que é o filme. Na preparação para a morte, o jovem, criado pelo irmão mais velho e pela cunhada, parte para a viagem da autodescoberta. A comparação com “Rei Édipo” impõe-se, no entanto sugiro “Pursued” de Raoul Walsh como contraponto. No filme americano, incompreensíveis memórias de infância atormentam o protagonista. No filme japonês, o passado estava adormecido, estaria o jovem Iori ciente do papel que a cunhada desempenhou na sua infância? Ambos os filmes lidam com a realidade da ordem, quer seja da espada ou da pistola, desenham o incesto sem o afirmar, e são focados na dinâmica familiar. Mais importante ainda, Morikawa e Walsh pedem-nos para seguir o que eles estão a tentar dizer, não o que eles dizem em concreto. Atentemos na cena da execução em “A Tragédia do Bushido”. Morikawa procura o suspense palpável na hesitação e morosidade do que vemos (vai ou não vai acontecer?), ou buscará antes um certo lado cómico da cerimónia, oficiosa e absurda, que sentimos (sobretudo na forma como acaba)?

A autoridade mantém a tradição. A abertura do filme preconiza a sua inamovibilidade: nem escalando a mais recôndita superfície poderá o fugitivo escapar às leis do código do Bushido. Este prólogo apresenta as arestas inquebráveis da tragédia, todavia não anuncia a dimensão do horror que se avizinha. Fosse esta a história de uma morte injusta e já seria suficiente. É preciso ainda tirar a máscara da família, instituição que cumpre as leis e costumes. Revelar o negativo, do irmão fraco (que vai cedendo o protagonismo do filme) aos segredos da cunhada, ficando apenas a ingenuidade do moço tornada coragem, ou não.

O culminar do abismo está na cena de amor. Se a consumação tem um ou outro vestígio de erotismo, cedo se desvanece pelo golpe desencadeado. Sem puritanismo, os cortes impedem que vejamos nádegas ou seios na areia. Em vez disso repete-se a intensidade da compressão entre peitos. Voltamos uma ou duas vezes a um mesmo plano. Morikawa brinca com a linha do horizonte da paisagem, por momentos separando as duas cabeças. A deixa sonora que preenche a cena, completa o ultimato.

Seria tentador e um pouco pretensioso apontar a câmara como o coro da tragédia, no entanto, ela move-se… No estudo da etimologia da palavra coro, o classicista britânico H.D.F. Kitto observou que o verbo “choreuo”, “Eu sou um membro do coro”, pode ser entendido como “eu danço”. E apesar de não gingar em bruscas panorâmicas, a câmara dança na partilha intercalada entre o absurdo e o perverso, concedendo intervalos para atentar no presente (a cabeça de Iori no momento da execução) e no passado, este último inobservável apenas escutado nas palavras da cunhada.

Agruras passadas e códigos cumpridos, ficam os edifícios nipónicos em planos de detalhe. Enfim, a tradição. Tudo longe da praia, longe das árvores, longe do mar. Arde uma memória. Curioso legado o de Prometeu, aquele que livrou o Homem dos deuses do passado e o entregou às suas mãos.

Eduardo Magalhães