A Sibila: A Questão Fica Aberta

“A Sibila”, adaptação do romance homónimo de Agustina Bessa-Luís, chega às salas de cinema no encerramento das comemorações do centenário da escritora. É, pois, uma excelente forma de estimular o leitor algo experimentado e o debutante à (re)descoberta da obra, assim como desafio à ideia da literatura “intraduzível” para cinema.

Conhecido o choque que causou, aquando da sua publicação em 1954, no panorama literário português à época marcado pelo neorrealismo, algum surrealismo, ou ainda a palavra dos decanos da já então extinta “Presença”, “A Sibila” é literatura que teima em não envelhecer e, mais difícil ainda, a não se prestar a decifração. Pode-se falar da técnica, do estilo, dos temas. No entanto, a relutância da obra em ser uma afirmação da personagem feminina (veja-se a distância para as Emas inglesa e francesa, as invenções das Brontë, ou as irmãs de D.H. Lawrence), ou um grande questionamento do poder na família (outra ideia recorrente no romance dos séculos XIX e XX), turvam e alimentam a análise. Estamos perante algo mais. E o cinema? O diálogo de Agustina é como a câmara de Ophüls, desliza, maravilha, portanto, nem à enésima vez estaremos certos do que acabámos de presenciar. O filme “A Sibila”, com argumento bastante fiel ao livro, procura fomentar esta indefinição.

No centro da história está Quina, cuja capacidade de ler o próximo pode ser confundida com o dom misterioso de profetizar, ou será ao contrário? São muitos os vaticínios urdidos por Quina a propósito do destino, da família, da existência. São também muitas as vezes que vemos Quina como grande interlocutora para com todas as personagens. Esta forma de estar a ninguém é indiferente, “sibila” para uns, “bruxa” para outros.

As circunstâncias e o carácter estóico de Quina empurram-na para guardiã, mais que proprietária, de um número considerável de terrenos. Até lá, esta mulher de Entre Douro e Minho já tinha erigido outra fortaleza, a pessoal, através da recusa seca do casamento, a diferença dos irmãos, a sofisticação do trato sem perda de personalidade – veja-se a primeira cena com a Condessa. Logo, divisas como “Na minha casa pode haver alguns roubos, mas não haverá desperdício” permitem-nos compreender o que é imperativo na sua determinação: a salvaguarda. Só a morte, bem captada na cena da morte do velho – “Na morte não há irmãos, ele já não é mais nosso…”, interrompe este nexo.

Porém, o fascínio que a protagonista exerce para o espectador nada tem que ver com a sua frugalidade ou a sua formosa segurança, é antes o namoro com a maternidade! O amor dado às crianças distingue-se do resto.

Primeiro, temos Rosa, a sobrinha dada a fugas de casa, que apenas se sente tranquila à beira da tia. O filme hesita em inserir o gérmen da maternidade nesta relação, oferecendo antes o confronto entre Quina e o cunhado, pai de Rosa. A seguir temos Germa, a narradora do filme, menina loira fascinada pela tia Quina e os seus ensinamentos. Atente-se como os olhos de princesinha burguesa perseguem a Sibila atrás da porta no confronto acima referido. Lamenta-se a brevidade de estas passagens no filme, repare-se que no romance Germa acusa o ciúme perante a preocupação de Quina com Rosa. Finalmente, Custódio, filho de gente miserável que Quina adotou. A escolha do nome “Custódio” pela escritora é propositada, era costume nesta época e local dar o nome de Custódio a todos os rapazes antes do baptismo, ora Custódio continua a ser tratado como tal mesmo após se tornar Emílio. Este rapaz parece ser a personagem mais injustiçada pela película, por um lado só temos uns segundos da sua infância, quadro no qual certamente a “fortaleza” de Quina adquiria outros contornos, por outro é completamente ignorada a menção do garbo e beleza do menino que extasiava os olhos da “mãe”. Mais, a transformação do menino apolíneo para o adulto bronco e idiota (não do género Dostoievski) perde-se no filme. Não se contesta a adaptação cinematográfica, que se quer sempre livre, exigia-se antes o aproveitamento de detalhes para o adensar da tragédia de Quina. Parte da história de Quina é essa, a paixão por Custódio foi uma substituição, não a verdade. Assim é a crueldade da pena de Agustina.

O valor das relações entre Quina e as crianças é a única fuga possível da mediocridade que infesta a paisagem. Os irmãos de Quina são fracos, o cunhado um bruto, o médico um vazio, aliás nesta galeria vazia de personagens só se destaca a Condessa, cujo fascínio por Quina esteve na origem da entrega do menino, filho de uma prostitua e de outro menino idiota que só sabia servir, como criado, a “mãe” Condessa.  Repito, assim é a crueldade da pena de Agustina. Aquele que foi gerado pela miséria à miséria tornará. Logo, Custódio estava condenado à partida e quão doloroso é aos olhos de Germa ver Quina embevecida pelo rapaz.

O filme encerra com o infortúnio da Sibila: “Só tinha o amor de um idiota”, que era o amor de ninguém. Antes da morte, temos a afabilidade da mão de Adão, o homem que na juventude pretendia desposar Quina, em jeito de reconciliação na velhice. Quina mantém-se intransponível e é aí que o “Você há de ser meu testamenteiro” assume-se como capitulação, não como profecia. Há nas horas finais da protagonista uma certa parecença com Charles Foster Kane ou a família Amberson (Agustina era grande admiradora de Welles), sempre se apresentou indecifrável, adiando o amor, guardiã de riquezas e personalidade solar para os que a conheciam. Mais que a casa da Levada, centro da fortaleza da Sibila, ficam a memória e dúvidas sobre a figura como herança para Germa, o que fazer? É tão raro perceber como a vida e o destino, se tal existe, se entrelaçam. Cantés!

Eduardo Magalhães