A Romancista, o seu Filme e o Amigo Hong

Certa vez li num texto no À Pala de Walsh, a propósito de um filme recente de Woody Allen, que vê-lo era como reencontrar um velho amigo. Muito redutor seria aplicar a mesma analogia a A Romancista e o seu Filme, mas se há um autor contemporâneo que se preste a este tipo de considerações, ele é Hong Sang-soo. De variação em variação dos mesmos motivos, o cineasta veio a desenvolver uma linguagem própria que constantemente nos pede que leiamos os seus filmes à luz das diferenças entre si, mais do que qualquer métrica exterior. Os tons autobiográficos dos últimos anos vieram ainda acentuar essa tendência. Vamos ver um filme de Hong Sang-soo quase para ver a evolução do seu pensamento sobre si, sobre a vida, sobre cinema.

Nesse sentido, não é novidade para Hong ter personagens que, directa ou indirectamente, verbalizam os seus próprios pensamentos (ou, pelo menos, da sua persona enquanto realizador), assim como é comum (se não generalizado) que as suas obras tenham um componente importante de meta-texto. Assim, mais cedo ou mais tarde, dependendo da familiaridade do espectador com o portefólio do realizador coreano, se percebe que a romancista que dá título ao filme, ao expressar as suas ideias sobre a obra que pretende fazer (um filme “de ficção”, mas cujo foco são “os gestos e olhares reais” que surgem entre gente com confiança e carinho mútuos, onde a história, existindo, “não é importante”), expressa também uma certa idealização que Hong faz deste próprio filme, assim como de aspectos que mais ou menos vinham a estar presentes em obras anteriores do realizador que diz esboçar as cenas a filmar com um elenco tão familiar (a maior parte do elenco conta já com perto de uma dezena de filmes com o realizador) apenas na manhã do dia de filmagens.

Esta perspectiva é cimentada pela colocação dos créditos do filme após aquilo que diegeticamente nos é apresentado como sendo esse filme que a romancista acaba por realizar, mas que consiste, na realidade, numa gravação do próprio realizador com a sua companheira, a actriz Kim Min-hee, num momento de catarse profundamente emotivo. Esses mesmos créditos são, aliás, reveladores da produção intimista que deu origem a este filme: Hong Sang-soo acumula uma miríade de tarefas, desde a realização à banda-sonora, enquanto Kim Min-hee, para além de actriz, é productora-executiva. À medida da romancista.

Todavia, antes de tudo isto, um outro encontro parece significativo para esta interpretação: há um par de cenas onde conhecemos um cineasta interpretado por Kwon Hae-hyo, um desses rostos já bastante conhecidos dos fãs de Hong. A dada altura a conversa, onde a sua mulher também participa, centra-se no novo filme do realizador: “os seus últimos filmes parecem mais claros, os críticos também o dizem”, “antes eu sentia uma espécie de compulsão para filmar”, entre outras descrições, assentam que nem uma luva a Hong Sang-soo. A questão é que, ao contrário da romancista, este é retratado como um tipo desprezível, evitante e paternalista em igual medida, que quando fala da sua obra mais sobressai a prepotência intelectual do que a honestidade. Na segunda cena com ele, vemos a protagonista irada a repreender as suas atitudes.

Torna-se então curioso notar como embora Hong neste filme mantenha uma dicotomia vincada entre homens e mulheres, fazendo uso de um estereótipo de “macho tóxico” que contrasta com a humildade e clarividência das personagens femininas, o realizador ele próprio não se projecta somente nas personagens masculinas. As suas reflexões e a sua visão são antes divididas por pelo menos duas personagens contrastantes. Os pensamentos por estas exprimidos não são, aliás, de todo opostos, antes perfeitamente complementares. O que se altera é a construção das personagens em torno deles, e a forma como são exprimidos, simbolizando-nos um conflito interno do realizador entre, por um lado, o exercício de certa forma egocêntrico e intelectualizante de aperfeiçoar a sua técnica e encontrar a linguagem cinematográfica justa e, por outro, a vontade declarada de conseguir uma expressão emocional genuína.

Diogo Vale