Jacques Lourcelles
O recente falecimento de Jacques Rozier, em Maio de 2023, despoletou a reavaliação da sua obra cinematográfica. Como se, tal como sucede com frequência no mundo das artes, lhe faltasse a morte para garantir o seu devido reconhecimento. E Rozier é um caso paradigmático nesse sentido. Com excepção de Adieu Philipine (1962), trata-se de um dos cineastas franceses oriundos da Nouvelle Vague cuja filmografia permanece mais secreta e por descobrir. Com a recente disponibilização mais facilitada dos seus filmes, tive a oportunidade de assistir a Du Côté d’Orouët (1971) e foram precisamente as características descritas pelo crítico francês Jacques Lourcelles, que provocaram maior fascínio. Uma cena em particular, ilustra inegavelmente este “puro presente” a que Lourcelles se refere.
É um momento simultaneamente tenso e cómico, mas o maior desafio é, imagino, como filmar o completo caos provocado pela fuga das enguias. A encenação, se houvesse alguma, fica suspensa, a imprevisibilidade reina. Rozier não controla, obviamente, o comportamento das enguias, e os próprios atores vão apenas reagindo da forma possível perante a câmara, que vai tentando captar cada instante.
E isto leva-nos ao motivo que esteve na origem desta crónica. No passado dia 21 de Setembro fui com o meu filho de 4 anos à Cinemateca Portuguesa. Inseridas na Sessão “Curtas: Miúdos à Solta”, da Cinemateca Júnior – Sábados em Família, foram programadas duas curtas-metragens. Beppie (1965), de Johan van der Keuken e Rentrée des Classes (1955), de Jacques Rozier. Foi a segunda vez do meu filho na Cinemateca, mas esta nova visita adivinhava-se mais desafiante. Se na incursão anterior o filme projetado foi Os 101 Dálmatas (1961), agora estávamos perante duas curtas-metragens legendadas e a preto e branco. Considerando a dieta inescapável de PJ Masks, Patrulha Pata ou Spidey e a sua Superequipa, a fasquia estava elevada. Beppie não entusiasmou e temeu-se o pior. Mas, felizmente, a curta de Rozier veio salvar a tarde.
E o fascínio, do pai e do filho, surgiu precisamente pelo “puro presente” proporcionado agora pela interação entre um jovem miúdo e uma cobra de água, um misto de medo com entusiasmo e muito riso. Numa pequena aldeia de Provença, em dia de regresso às aulas, um rapaz atira a sua mala ao rio, depois de apostar com os colegas.
Tal como em Du Côté d’Orouët já era possível verificar no seu filme de estreia a preocupação com a descoberta proporcionada pela captação do presente, do tal instante “dilatado, observado sob uma lupa”. Enquanto pai foi curiosa a preocupação crescente com o desenrolar da narrativa e com os comportamentos rebeldes do protagonista. Um protecionismo que se dissipou, dando lugar ao êxtase provocado pelo mergulhar nas belíssimas imagens que acompanham o petiz no seu encontro fabular com a natureza.
Enguias, cobras de água, a verdade é que a encenação (ou falta dela) de animais no cinema, dava para toda uma outra análise ou estudo. Mais um exemplo de uma visualização recente que concorre para esta tese é The Tall Man (1955), de Raoul Walsh, programado no excelente ciclo de westerns que decorre no canal Star Movies.
O contraste com Rozier é evidente, estamos perante toda uma outra escala. Do cinema independente francês diretamente para um dos géneros mais prolíficos de Hollywood. Por outro lado, a falta de encenação poderá ser aqui mais questionável, nem que seja pela forma ordeira com que o gado se desloca pelo rio, seguindo as indicações dos cowboys. Mas o fascínio mantém-se, quando contemplamos a vida a acontecer perante o olhar paciente e atento da câmara. Porque mesmo com meios de produção plenamente díspares, permanece a “milagrosa forma de filmar”, onde o “presente puro” se torna “também um presente mágico, recomposto, o presente da memória e da poesia.”