A Paixão de Almodóvar – Retrospetiva do Batalha Centro de Cinema

Laura MendesJulho 18, 2025

Desde março até julho, teve lugar no Batalha Centro de Cinema uma retrospetiva dedicada a Pedro Almodóvar – A Paixão de Almodóvar, de seu nome – que permitiu um plano geral daquilo que é a paixão, que se desdobra em várias, do cineasta sempre preocupado com o suor, o sangue, as lágrimas: a beleza da emoção.

Se, por um lado, este ciclo se revela tão completo, presenteando-nos com quase todos os trabalhos de Almodóvar (e que profícua é a sua obra!), por outro, privilegia a diacronia, permitindo a compreensão evolutiva das ligações temáticas e estéticas que unem e completam esta filmografia ímpar do cinema mundial. Destacam-se aqui alguns dos filmes exibidos ao público, na esperança de perpetuar na memória coletiva um feito curatorial e programático de valor inestimável, ao mesmo tempo que se percorre a obra riquíssima de Pedro Almodóvar, um admirável interlocutor de vozes habitualmente silenciadas.

     

Todo Sobre Mi Madre (1999)

Ainda que longe de ser o seu primeiro trabalho cinematográfico, Todo Sobre Mi Madre foi o primeiro filme de Almodóvar a ser exibido nas salas do Batalha. Decisão justificada por incorporar uma homenagem à atriz e musa do cineasta, Marisa Paredes, foi um êxito de bilheteiras, com sessões esgotadas. Não só se trata, talvez, do seu filme mais (re)conhecido, como também de um trabalho que demonstra, na perfeição, aquilo que move Almodóvar, bem como o que melhor sabe retratar – as peripécias intrincadas que envolvem a mulher, a marginalidade e a emoção. Centralizando o destino – como faz noutras narrativas – enquanto força motora de (des)encontros, a reverência a esta entidade é tal que aquilo que de si nasce tem tanto de tragédia como de paz reconciliadora. Um filme marcado por profundas dores familiares, relacionais, amorosas… no fundo, dores da vida que se vão originando, perdendo, reciclando, mas que fazem avançar. Não esqueçamos a também pressagiosa presença do teatro, a contaminação entre personagem e quem a representa, entre narrativa apresentada e quem é dela espectador, vivendo as várias faces da fábula, a qualquer momento tornada real. Os alívios de tensão proporcionados pelas típicas tiradas cómicas de Almodóvar são um verdadeiro regozijo, sem nunca nos sair da cabeça o tom de consciencialização, de respeito pelas vidas que retrata, equilibradamente vagueando entre encenação e lição. A pura aliança maternal é a grande protagonista deste filme que alarga a palavra mãe a muito mais do que alguém que dá à luz.

 

Pepi, Luci, Bom y Otras Chicas del Montón (1980)

Pepi, Luci, Bom y Otras Chicas del Montón abre a “onda de erotismo que nos invade”, característica dos primeiros trabalhos de Almodóvar – os loucos anos 80 –, que priorizam os comportamentos, os grupos e a sexualidade subversivos. Absolutamente radical, à moda de John Waters (até direito temos à referência a Divine, num pequeno poster a meio do filme); os traços melodramáticos posteriores estão, aqui, ainda bem escondidos ou, pelo menos, não são tão significativos. O que sobressai não é a falhada história de amor e as suas repercussões (ainda que a mesma exista), mas a transgressão, o desafio à lei, aproveitando-se da sua vulnerabilidade e intimidade, trazendo ao de cima aquilo que de mais profundo há – masoquismo, fetichismo, as vítimas rebeldes (bem como conformistas) do patriarcado e as suas vinganças. Em processo de composição do seu estilo próprio, porém já assertivo no que escolhe destacar, é no guarda-roupa, na cenografia, na banda sonora e na convocação da força feminina – os primeiros passos de Carmen Maura por entre histerias coloridas são notáveis – que vemos os frutos de Almodóvar crescer, e de que maneira encantadora.

 

Mujeres al Borde de un Ataque de Nervios (1988)

Porventura o mais bem construído espetáculo de Almodóvar, Mujeres al Borde de un Ataque de Nervios conjuga a desenvoltura dos ícones femininos com o toque profundo do abalo emocional. Munido de uma absoluta estilização – que começa nas maquetes, passa pelo horizonte de cartão e termina nas inúmeras, fantásticas e aparatosas mudanças de roupa de Pepa (Carmen Maura) e Lucía (Julieta Serrano) –, o tom kitsch que dela emana, mais do que uma via de prazer estético, é uma via de emancipação destas mulheres. De caminhos cruzados, mais uma vez, pelo acaso (masculino), se a razão dos conflitos entre si gerados é a traição dos homens, será a mesma razão que as aproximará, sendo a mais bela mensagem do filme a efemeridade da dor, bem como o seu poder unificador. De um ritmo avassalador, entre desmaios, soporíferos, tentativas de suicídio e de assassínio, o caos narrativo que se desenrola à nossa frente, tal qual matrioshkas, está tão bem entrelaçado no trabalho de câmara, nas escolhas cinematográficas, que as imagens têm a capacidade de transitar entre quadros burlescos de humor e metáforas visuais que remetem para o âmago das personagens – a fabulosa cama de Pepa a arder, lembrando a fogosidade e a fugacidade daquele amor perdido, os seus tacões pululantes, o telefone tantas vezes avariado, a memorável receita de gaspacho… Uma ode ao “puro teatro”, como ouvimos na canção final, com a certeza de que é na falsidade teatral que reside o ímpeto para o belo e para a superação.

 

La Flor de Mi Secreto (1995)

Uma surpresa deste ciclo, um conto (tele)novelesco que, entre os seus chavões, consegue apropriar-se de nós e mover-nos ao balanço do desespero de Leo (Marisa Paredes). Estão aqui presentes as já conhecidas dores do abandono, desta vez mais aflitas, as dores da figura autoral, mais evidentes do que nunca, as mágoas da traição, da negação e da frustração. Um filme-compêndio que integra referências a outros do cineasta, e é nesse pensamento estrutural que encontra a sua beleza. Uma narrativa mais leve, com as intervenções de Rossy de Palma (à qual nunca há um dedo a apontar) e Chus Lampreave, representando o embaraço familiar, mas reconfortante, e que deixam a sala inteira a rir.

 

Hable con Ella (2002)

O mais estridente dos filmes apresentados, por constituir uma constante sucessão de surpresas inacreditáveis – nem sempre agradáveis – mas, acima de tudo, por nos confrontar com personagens de duplos sentidos, por nos fazer questionar os limites do bem e do mal, enquanto espectadores. Benigno (Javier Cámara) – cujo nome é cuidadosamente escolhido – soa como um anjo protetor, impressiona-nos pelo cuidado, pela forma como fala e age, atencioso. Os seus olhos escondem, porém, intenções perturbadoramente erradas, que Almodóvar não deixa de tratar com uma empatia hesitante e desconcertante, mas nunca absolvente. Trata a questão do consentimento e do corpo exposto por meio de uma história peculiar, munida de intricadas e interessantes complexidades, mas em última instância fazendo justiça à sua vítima, Alicia (Leonor Watling). O acaso atinge aqui a sua potência máxima, tangendo o ilógico, rejeitando um realismo ameaçador e aproximando-se – não fosse este um verdadeiro Almodóvar – do conto mágico esperançoso. Como nós, Marco é apanhado numa circularidade absorvente e é esta a personagem que mais nos espelha, lacrimejando à visão de coreografias que transcendem o palco onde são brilhante e intensamente libertadas.

 

Los Abrazos Rotos (2009)

Indiscutivelmente almodovariano, há, no entanto, algo de mais obscuro neste filme, que se afasta da joie de vivre – ainda assim associada à dor – presente noutras das suas obras, aproximando-se do negrume marcado por magoadas recordações nunca olvidadas. Não há tanto espaço para o brilho da feminilidade – vemo-lo, sim, no curto mas precioso filme dentro do filme e, claro, no respeito prestado à atordoante beleza de Penélope Cruz –, já que se trata de abordar uma ferida aberta: o autor de identidade(s) perdida(s) vai contando a sua labiríntica história de amor com uma mulher que, por sua vez, é também parte de uma outra história de amor obsessivo. Os monumentais encadeamentos entre vivências adquirem em Los Abrazos Rotos outra dimensão com a introdução do filme como meio de lembrança, de experiência, como espaço de preservação da imagem de alguém que se ama, mas também como alavanca de manipulação.

 

Madres Paralelas (2021)

Recuperando a mãe, um dos mais recentes trabalhos de Almodóvar revolve, muito declaradamente, em torno da família e da importância de conhecer a ancestralidade individual e coletiva. Famílias quebradas, não convencionais, colocando em jogo as dinâmicas políticas e sociais que fragilizam estas mulheres que são mães, filhas, netas e avós. Várias são as denúncias do sistema – as maternidades forçadas e solitárias, as paternidades difusas, a guerra e os poderes que reprimem e fazem desaparecer. Não tão marcante na sua forma, já longe dos seus primórdios punk de mais experimentação, e de alguma frivolidade, é, apesar de tudo, um grito de reivindicação adequado à sua audiência, e a imagem final com que nos deixa atesta o apelo à comunidade, à compreensão, à luta por aqueles que não conseguiram, nem conseguem, fazer justiça por si.

 

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Fica o repto para que nos debrucemos sobre estes e os restantes filmes do cineasta que consegue sempre invocar novas personalidades, novos contextos e novas ambiências, mantendo-se fiel às suas paixões – que vão desde as causas que defende com recurso à sua visão autoral (e que não se esgota no cinema), às suas mulheres-musas, heroínas de histórias apaixonadas e apaixonantes.

 

Laura Mendes