A Mulher que eu Abandonei, de Kirio Urayama, integra a programação do Ciclo de Mestres Japoneses Desconhecidos que será exibido a partir de dia 3 de Novembro no Cinema City de Alvalade, em Lisboa.
Este artigo contém spoilers
Datado de 1969, este filme japonês conta com o argumento de Hisashi Yamanouchi baseado no romance homónimo de Shûsaku Endô, autor de Silence, livro adaptado para o cinema sob a lente de Martin Scorcese em 2016.
Este é um filme em duas camadas: a primeira, de âmbito histórico, retrata o ano de 1969 no pós luta estudantil e contestação social por melhores direitos laborais. A segunda fala da desconexão entre o Homem e a sua vertente emocional. É dentro destes dois pilares que a narrativa do filme é desenvolvida.
É dentro de uma fábrica de automóveis que observamos Yoshioka. Um jovem adulto, estável na sua carreira no ramo automóvel e com planos futuros de vir a casar com Mariko, a sobrinha do Presidente da fábrica. Esta rotina quotidiana é quebrada quando alguém o recorda de Mitsu Morita.
O passado desenterra-se. Mitsu representa uma viagem sentimental aos tempos universitários, onde a paixão fervilhava, paixão posta de lado em detrimento de procura por ascensão social. Mitsu era uma rapariga simples, sem posses para estudar, abandonada sem discussão. Em sépia o passado, contrastando com o preto e branco do futuro. A Mulher Que Eu Abandonei começa a pesar a culpa do seu protagonista, expressa nos movimentos de câmara lentos e distantes, na banda sonora fatal e tétrica, picos de tensão que observamos a cada segundo. Yoshioka ignora todo o seu eu sentimental e de repente é invadido por tudo o que durante anos tentou esconder e esquecer. Um herói trágico. Um drama denso e penoso envolto em dores de crescimento e aflições emocionais. Na realidade Yoshioka abandonou-se a si próprio quando deixou Mitsu.
A banda sonora viaja em sons que nos ajudam a libertar esta tormenta sentimental, tão densa como este drama romântico dita. Os sons auxiliam a queda da máscara, a luz varia e mostra-nos toda a superfície da face de uma pessoa, usando a estética do Teatro Noh. A câmara movimenta-se de forma genuína e singular, acompanhando de forma pessoal as personagens.
A Mulher Que Eu Abandonei transforma-se n’O Homem Que Eu Abandonei. Toda a hipocrisia que Yoshioka manifestou só o distanciou de si mesmo à procura de algo ditado pela sociedade. Esta memória de Mitsu traz ao filme o peso da ansiedade, da falta de resolução sentimental, e da consciência que se espalha pela sala como algo de trágico e incontornável. Um homem que não se conecta às suas emoções, que se repreende por sentir, e que se julga a si mesmo: um cobarde. Ficamos em silêncio. Um silêncio que não nos abandona nem abandona Yoshioka.
É um dos filmes a não perder da nova vaga japonesa, expressando-se de forma dilacerante, e que marca a contestação de hábitos e costumes sociais nos anos 60 japoneses.