A impossibilidade de ser Kafka – Leffest 2024

Eduardo MagalhãesNovembro 25, 2024

Kafka conseguiu mostrar a intimidade sem ser vulgar. Primeiras leituras ou primeiros encontros com textos sobre a obra do escritor não necessitam de nota prévia, mais que o homem do pesadelo, da insónia, do labirinto – epítetos incompletos, pois o aparente anonimato dos seus protagonistas ou até mesmo a leveza da palavra na primeira pessoa suscita uma imediata afinidade com o leitor. As suas sedutoras parábolas agarram-nos e não mais nos largam. Há um lado vertiginoso que é cómico. Há um lado pesaroso que é profundamente livre. Esboroados os contornos de uma normalidade tão real quanto o nosso quotidiano, a matéria é sempre insuficiente para acompanhar o destino que as sensações denunciam. Principiemos, então, por acordar, como os heróis de Kafka, abrindo a janela ou correndo a cortina, para espreitar o que o cinema fez com as criações do escritor.

 

O Processo (The Trial, 1962) – Orson Welles

Questionado sobre o que tornava a corrida de carros no início de “North by Northwest” tão emocionante, apesar de nós, enquanto público, sabermos que Cary Grant nunca poderia ser morto tão cedo, Hitchcock respondeu: “É puramente o uso do cinema em termos da substituição da linguagem da câmara pelas palavras… É uma forma de expressão. E usar o tamanho da imagem. E a justaposição de diferentes partes de filme para gerar uma emoção no espetador. Podemos usá-la de tal forma que ele esqueça a razão. Logo, quando diz que Cary Grant nunca poderia ser morto tão cedo, aí está a aplicar a razão. No entanto, não consegue aplicá-la, porque o filme tem de ser mais forte que a razão”.

A personagem de Cary Grant, em “North by Northwest”, é forçado a assumir o papel de George Kaplan, pois a sua vida depende disso. Para sobreviver, em todas as interações – sejam elas românticas, sociais ou conflituais – Grant tem de assumir uma persona que esteja suficientemente distante da sua, daí a qualidade burlesca do filme. Desempenha magistralmente um idiota num leilão, tal como um atleta no célebre ataque no milheiral. Na elasticidade jaz a chave do seu sucesso, tornando-se maior que o plano que protagoniza, maior que o enredo de que se se esquiva.

No mesmo sentido de Grant e, simultaneamente, no sentido oposto, está Josef K. (Anthony Perkins) no filme de Welles. “He is guilty as hell” resmungava o realizador a Perkins nos ensaios. Se o romance de Kafka começava com o protagonista a tentar raciocinar sobre o que lhe estava a acontecer – acordar e ser acusado de um crime que desconhece (como um pesadelo) –, o filme de Welles não perde tempo em insinuar a culpabilidade de Josef K. através de um desfile de rostos estranhos no pequeno quarto do protagonista. K. não fez nada de errado, porém a forma como age não nos permite contestar a acusação.

A longa cena inicial no quarto afere a incomensurabilidade do processo que se segue. Personagens invadem a intimidade de K. convictamente tranquilas, despoletando uma intermitente ansiedade no protagonista. Se a imagem enceta o mistério, o diálogo convida o riso tal é a irritação e desespero:

“What’s this thing?”

“That’s my pornograph – my phonograph.”

Ou ainda, comentando uma forma no chão do quarto de K.:

No, it’s not really circular. It’s more ovular.”

“Don’t write that down…”

“Ovular!”

“For Pete’s sake.”

“Why not?”

“Ovular? Ovular isn’t even a word.”

“Do you deny there’s an ovular shape concealed under this rug?”

Temos apenas a certeza de que nada de bom se augura.

Perkins, tal como Grant, tem de reagir ao que o rodeia. A diferença está na incapacidade do primeiro em assumir o burlesco. Perante multidões, Grant é o malandro, o criminoso, o imbecil, Perkins não chega a ser nada, antes dilui-se numa postura tíbia e complexada até a histeria tomar conta do seu corpo. Porém, K. é verdadeiro, enquanto George Kaplan é uma farsa. Melhor, K. é alguém verdadeiro embrulhado numa teia de mentiras, Kaplan uma farsa num puzzle inverosímil.

A reforçar a adversidade no percurso de K., há o lado animalesco das personagens que encontra, acoplado a um sentido de humor desviante e sugestivo. A vizinha de pensão, Miss Bürstner (Jeanne Moreau), começa por ronronar as falas até se aperceber da dimensão do caso que K. lhe relata, transfigurando-se numa gata assanhada que o expulsa do quarto, cena esta que termina com uma bizarra punchline. Há mais. Há Kaminer, Kullich e Rabensteiner, os três colegas de escritório que apenas acenam como sempre-em-pés. Hastler, advogado de K., uma fumegante lagarta paquidérmica interpretada pelo próprio Orson Welles, sempre auxiliado pela sedutora Leni (Romi Schneider) enquanto se riem do desgraçado Bloch (Akim Tamiroff), réu tornado cão-de-loiça. Enfim, uma galeria noctívaga que intensifica o absurdo do caso de K., primeiro cómico, depois trágico.

Relativamente ao sentido de humor, central na primeira parte do filme, merecia por si só ser alvo de grande análise. Por vezes, aparenta ser herdeiro da tradição muda, em que o plano sugere o mal-entendido, enrolando na ponta da língua o innuendo. Em outras ocasiões, a tentação de leitura política é forte tal a imprevisibilidade (e absurdo) do diálogo e situação que não destoaria, por exemplo, de um filme dos irmãos Marx. Naturalmente, como homem da rádio, para além de dobrar imensas personagens secundárias, Welles soube emprestar a cada uma das vinhetas uma acertada pomposidade. Por sua vez, Perkins, como centro dos apontamentos, nunca quebra a sua treinada repressão, veja-se como até na tripla sedução de que é alvo nenhuma das mulheres o consegue manobrar tal é a rigidez dos seus reflexos.

Who’s she?

She? My cousin Irmie, what is she doing here?!

There’s a place for those things K.. How old is she?

What? Irmie? She’s ahh…

Can’t be more than 16, if that. By God!

You’re a house painter?

Josef K. está irremediavelmente no sítio errado à hora errada. “The Trial” foi rodado em partes da ex-Jugoslávia, uma gare francesa abandonada, entre outros sítios, todos eles uma ambiência sinistra mais forte que a razão. O processo de K. já não é o caso de um homem, é consequência da incapacidade de qualquer homem. K. é tão culpado como os outros, apenas não o sabia- qual a acusação, quem me acusa? O aproveitamento do décor, muitas vezes em ângulos invulgares, a distorção na profundidade de campo, ou a força da arquitetura nas composições esmagam K. A questão da culpa torna-se irrelevante, pensa nas regras do jogo: o advogado, as teias do poder, subornar (como os detetives que denunciou), mendigar (como Bloch), tudo inútil. Apercebendo-se disso, sair é a única opção.

Orson Welles nunca deixou de ser americano e este filme está até mais próximo de Joseph H. Lewis (“My name is Julia Ross”, “The Big Combo”) e Jules Dassin (“Night and the City”) do que qualquer nova vaga europeia. Muito se tem escrito se o processo de K. não é também o processo de Welles: mais do que a expulsão de Hollywood, a contínua perseguição ao homem que ousou desafiar a América mais do que uma vez. Sim, o ego do realizador era tremendo, porém tais considerações, por mais interessantes que sejam, são manifestamente insuficientes perante o espetáculo de frustrações profundamente banais e não menos comoventes que é este seu filme.

Kafka depois do Holocausto, depois da bomba atómica, depois do gulag. Conseguir plasmar, por uma avenida de intrigas, modelos e bricabraque, o futuro. Que dizer da cena em que com dois anos de antecedência, o filme ensaia uma pérfida e disforme Beatlemania, com dezenas de raparigas a perseguirem Anthony Perkins? Chega a ser doentia a convicção que a histeria será a chave da Humanidade pós-1945. Se “The Trial” é um pré-aviso sobre o cinema, então o cinema será um mero “visual aid” tão monstruosamente alienado como tudo o resto. A arte a capitular perante a máquina, o artista, sobretudo o artista provocador e revolucionário, como uma das maiores ferramentas do poder respeitável. Os pincéis de Titorelli assim o ditam, quer no livro, quer no filme.

Agora, a lei. Primeiro, regressa o tema musical – o Adagio de Albinoni (que era do Giazotto) – que ouvimos inúmeras vezes. Nem a trivialização da música a torna menor, por muito que custe a certas operadoras de telecomunicação. De seguida, o preâmbulo, a parábola inicial: o homem que chega e pede acesso à lei apenas para o guarda lhe dizer que de momento é impossível passar. K. repudia as premissas da parábola: “Sim, no final, já prestes a morrer, ele ouve o guarda diz que mais ninguém apareceu a pedir acesso à lei porque a porta só se destinava a ele”.  O advogado insiste que o homem da parábola surgiu de livre vontade. K. não aceita a história como verdade, ao que o advogado responde que não é preciso aceitar como verdade, antes como necessidade. K. fica ainda mais enojado, tal como ficou quando o advogado reparou, que, por vezes, “é mais seguro estar acorrentado que livre”.

Finalmente, o veredito de K.: “não sou mártir, não sou vítima da sociedade, sou um membro da sociedade”. Recusar até ao fim a impossibilidade do mundo, algo que o tribunal preferiria. Ciente de tudo isto, a tragédia avizinha-se. Welles não conseguiu levar a cabo a sentença que Kafka escreveu; projetou-a pelo ar e, com isso, talvez consigamos ouvir, ainda com mais força que o Adagio, as palavras finais de K. no livro: “Como um cão!”.

 

América – Relações de Classe (Klassenverhältnisse, 1984) – Jean-Marie Straub e Danièle Huillet

A dada altura, Kafka escreve na sua extensa “Carta ao Pai” que, na juventude, o mundo lhe parecia dividido em três: o do escravo que se submete às regras que foram criadas propositadamente para ele e que o mesmo não consegue cumprir, o do comandante que se exalta pois ninguém o obedece, e um terceiro sem ordens nem obediência onde as pessoas são livres. Em “América – Relações de Classe”, cada cena ou cada bloco de diálogo podem ser vistos como uma exibição dos poderes dos primeiros dois mundos. O jovem Karl Roßmann (Christian Heinisch) encontra-se invariavelmente (ou voluntariamente) impossibilitado de cumprir as ordens que as restantes personagens lhe dão, o que resulta em assomos de cólera destas últimas.

És o único rapaz que, por princípio, não me cumprimenta!

Cumprimento-o, sim, senhor Chefe Porteiro. Saúdo-o várias vezes ao dia, mas, naturalmente, não todas as vezes que o vejo, uma vez que passo pelo senhor mais de cem vezes por dia.

Tens de me cumprimentar sempre, sem excepção. Talvez no teu próximo emprego saber-te-ás como te dirigir a um superior mesmo que seja, porventura, num buraco miserável qualquer.

Tomemos o caso da discussão de Karl com os seus empregadores a propósito da sua ausência num determinado momento, que escala para uma altercação furiosa relacionada com o comportamento do jovem. Não é o motivo do confronto que nos interessa, por mais bizarro que seja. Teimando em explicar o sucedido, Karl parece não compreender que, mesmo tendo razão, não é ele que dita o que está ou não está certo. A performance dos actores é disso elucidativa. Como dois vulcões, os actores que interpretam os superiores cospem o diálogo para uma grande plateia inexistente, já Christian Heinisch tem uma postura quase apática. A convicção dos primeiros domina a acção. Cortamos para o mancebo não quando ele fala, antes quando algo genuinamente precioso está em risco, neste caso, a confiança da cozinheira-chefe, que foi quem lhe arranjou o trabalho.

A relação de classes é, pois, marcada por diferentes graus de obediência. Karl, como um idiota, qual Parsifal como atentaram os realizadores, age sempre por um sentido de dever. Dever para quem lhe é verdadeiro ou falso, dever para quem lhe é cruel ou generoso. Este sentimento de lealdade não se coaduna com a racionalização da ordem que lhe é transmitida, logo, Karl estará condenado a ser sempre entendido como um marginal, estranho à dinâmica social envolvente.

Esta nobreza de carácter do protagonista também pode ser lida como uma representação pequeno-burguesa, algo que Straub não descartava. Num primeiro momento, vemos Karl embevecido pela franqueza do fogueiro que encontra no navio que o transporta para a América. O fogueiro diz-se maltratado pelo engenheiro-chefe, que o quer substituir. Karl desafia-o a expor a situação, pelo que vão os dois aos aposentos do capitão. O fascínio de Karl pelo velho não anda longe da forma como Cesário Verde olhava as mãos gretadas dos calceteiros ou as ancas musculadas de uma vendedora de fruta.

Será pequeno-burguês na medida em que se limita a observar encantado, incapaz de tomar uma atitude. Acusação essa que se revela injusta, uma vez que, ao ver o fogueiro atrapalhado na interpelação ao capitão e aos seus convivas, Karl procura defendê-lo. No entanto, e isso é sublinhado no filme, cedo se desfaz o nobre intento. Um dos amigos do capitão então presentes, mais não é que Jakob, o tio rico de Karl, que procurava o sobrinho que não conhecia. A conversa transforma-se, centrando-se agora na origem do jovem advogado, algo que pouco vale ao fogueiro, que vê a sua questão esfumar-se. O humor de Kafka a salpicar na sociologia, a classe de Karl traiu-o! O que fazer? A cena é rematada com uma dose de pietismo, com um Karl ajoelhado lamentando o sucedido, pedindo ao velho que não desista.

Kafka assumiu em escritos a influência que Dickens teve na escrita de “Amerika”, o romance no qual o filme se baseia. Paralelamente, Straub e Huillet gozam ainda hoje de uma reputação de cinema difícil, são talvez vistos, e isto é mera especulação, como autores que não renunciavam a uma aridez pouco palatável. Porém, um olhar mais desempoeirado, atentará em algumas arestas dickensianas que não serão assim tão despropositadas.

“Amerika” e “América – Relações de Classe” têm algo em comum com “Great Expectations” e até numa escala menor com “Hard Times. O mesmo jovem herói lançado à grande cidade, a mesma arena industrial, um enlevo poético fulminado por uma matriz utilitarista, mas que resiste…. Podíamos até fazer uma correspondência de personagens com Karl a ser um Pip do século XX, porém, é mais proveitoso observar como o classicismo novelístico conseguiu chegar a partes da estrutura do filme mais acessível de Straub-Huillet.

Pense-se na simetria das relações de Karl. Vejamos, há um primeiro benfeitor – o tio, que procura dotar o sobrinho da pose e da virtude da classe de que o jovem se rapidamente eclipsa, e uma segunda benfeitora – a cozinheira-chefe, totem de uma maternidade perdida que o estima, que o orienta, que se preocupa.

De seguida, temos a límpida camaradagem com o velho fogueiro que, já referimos, é imbuída por um desavisado ímpeto libertador. Esta efémera amizade contrasta com a camaradagem perversa de Robinson e Delamarche, dois valdevinos com que Karl nunca se entende nem se liberta, pérfidas sombras às quais o herói, por mais de uma vez, se submete. Robinson e Delamarche partilham traços da realidade dos filmes de Bresson. O erro de Karl é achar que os deve proteger (arranjar comida e guarida), não porque não mereçam, mas porque, tal como aconteceu com o fogueiro, tal é inútil enquanto os dois primeiros mundos da carta (os que obedecem e os que são obedecidos) existirem.

Por fim, o interessante díptico Klara/Therese, de um lado uma fúria carnal inconsequente, do outro uma delicada partilha radiosa. No primeiro quadro, Klara arranca violentamente Karl do seu estranho conforto à janela. No segundo quadro, Therese vai ao encontro de Karl entender o que se escondia por trás da janela. Em ambos os casos, com Karl praticamente mudo, as mulheres procuram a intimidade, de forma precipitada no primeiro e suave no segundo.

O equilíbrio da composição dos planos convida à serenidade, dá-se palco à palavra.

Mova-se se conseguir…. Estou muito tentada em pregar-lhe um estalo, ao vê-lo assim deitado. Talvez me arrependesse. Se o fizesse agora, saberia que estou a fazê-lo contra minha vontade. E, naturalmente, não me contentaria com uma única bofetada. Pela direita e pela esquerda, batia até que as suas bochechas inchassem. Aí, se fosse um homem honrado, talvez não quisesse continuar a levar os estalos…

Estas tempestades de neve nas ruas largas e compridas de Nova York! Se andamos contra o vento, mal conseguimos abrir os olhos, pois este trata de empurrar a neve diretamente para o rosto. Corremos, mas parece que não avançamos. É desesperante. A minha mãe levava dois dias sem trabalho…

Nem mesmo os grandes planos na cara de Karl desvendam o que este sentiu. É necessário que assim seja, que reação seria ajustada face à história que Therese conta? Qual seria a resposta a dar a Klara? Não esqueçamos que este é o mesmo rapaz que adormece sobre uma fotografia dos pais, o mesmo que se defende dos patrões ou de Robinson e Delamarche por uma posição moral incorruptível, reta e sem expressão como o seu corpo. Karl permanece impenetrável. Fará sentido, agora, compreender que os longos planos dos autores – nos quais as personagens saem porque a cena já findou, deixando-nos a fitar a paisagem ou o que quer que fosse apresentado – funcionavam como respirações num lugar extenuado de confrontos como um músico que não se apressa para o próximo compasso.

Gregor Samsa divertia-se a saltar e experimentar novas posições no seu novo corpo em “A Metamorfose”, sempre sem sair do seu quarto. De emprego em emprego, de estação a estação, Karl Roßmann parece ter passado pelo mesmo. Um quarto e um mundo como duas experiências intermináveis até os seus pensamentos atingirem a redoma sem a conseguir quebrar. Porém, talvez o terceiro mundo, que na sua meninice Kafka descrevia como de pessoas felizes e livres esteja numa terra por inventar. O rio americano, o rio de Huck e Jim, poderá ser um começo.

 

Chacais e Árabes (Schakale und Araber, 2011) – Jean-Marie Straub

Adaptado de um pequeno conto de Kafka, “Chacais e Árabes” faz de um pequeno quarto com acesso a uma igualmente pequena varanda um imenso deserto povoado por árabes, chacais e um europeu viajante. Uma mulher faz a vez de chacal, uma voz off em tela escura (voz do realizador, Jean-Marie Straub) é o europeu e, por fim, um homem é o árabe.

Sentada por cima dos joelhos, a atriz vai dizendo os lamentos dos chacais. Sem subtilezas, cumprimenta o europeu, canta-o como o salvador. Após a resposta polida do europeu, a atriz em grande plano continua a conversa. Tece considerações pouco amigáveis sobre os árabes: “nem o Nilo teria água suficiente para limpá-los”, à medida que enfatiza o desprezo e a repulsa que a visão dos mesmos lhe provoca.

Entretanto, os chacais rodeiam o europeu que, amedrontado, pede que se afastem. Aqui, o rosto sibilino da atriz oferece, evasivo, a descrição de um costume antigo no qual os chacais soltavam lentamente os dentes. Estranha forma de persuasão. Para onde olha? Primeiro para baixo, depois fitando o vazio, até a súplica permitir um ligeiríssimo gesto teatral inclinando a cabeça para a esquerda. Estamos já a meio da curta-metragem, o pranto dos chacais prossegue entre elogios e insultos, enquanto a atriz vai ganhando elã de sacerdotisa pela incorruptibilidade do seu rosto (não sorri, nem se exalta). Os olhos já dardejaram toda a sala. A sua voz ganha força, violenta, arremata o pedido num movimento, mostra o que tinha escondido nas mãos: a tesoura. “Corte as gargantas deles com esta tesoura!”

O traço minimalista dos planos e cenário não procura misticismo. Se recusarmos o salto que a literatura permite, em que o patamar da imaginação do leitor pode colorir como quiser o oásis onde os intervenientes se cruzam, a nuance da curta estará na forma como o alemão é dito, na musicalidade. Importa sublinhar que ainda antes de tudo isto acontecer, o filme abre com música de György Kurtág sobre as seguintes palavras: “Novamente, novamente, banido para longe, banido para longe/ Montanhas, deserto, uma terra distante temos de percorrer”. Procurar dentro da universalidade – a hostilidade, os costumes, as crenças – o cunho e valor da língua e não ao contrário. Não é o alemão, como todas as línguas, resultado de confrontos passados entre povos distintos?

O actor que interpreta o árabe interrompe a conversa entre os chacais e o europeu. De pé, afasta a tesoura oferecida ao europeu. Inicia, então, a sua breve interação com o europeu. Há um grande pragmatismo no que diz: sabe da intemporalidade da tesoura, irá ser sempre oferecida aos europeus enquanto os árabes existirem, fruto das ingénuas aspirações dos chacais. “Amamo-los por isso, os nossos cães. Muito mais bonitos que os vossos. Maravilhosos animais, não são? E como nos odeiam!” É nesta fulgurante certeza, vincada no rosto do actor, que o filme termina.

Decifrar o problema lógico de Kafka é muito tentador. O europeu permaneceu impávido, a sua presença não foi mais que mera sombra no duelo a dois tempos entre chacais e árabes. No entanto, é a ele que as duas partes atribuem a possibilidade de alterar o curso, usando a tesoura. Muitas interpretações políticas são possíveis, ainda por cima quando sabemos que o conto de Kafka foi publicado, em 1917, num jornal de nome “Der Jude” (O Judeu). Não nos interessa partir por aí. Quantos confrontos permanecerão à flor das águas? Se a chave dada ao europeu, uma de destruição, é a única solução até ao fim dos dias, mais vale continuar a vaguear pelo deserto.

Por fim, note-se, como o realizador preside aqui a um feliz acidente: enquanto o árabe tempestuoso vai fazendo a sua declaração de amor aos chacais, ouve-se, embora de forma quase imperceptível, primeiro o choro de uma criança e, mesmo a acabar, uma exclamação infantil. Que cada um faça disto o que bem entender.

Eduardo Magalhães