A Fantasia da Mulher Entre Perseguições: Doris Wishman

Laura MendesMaio 15, 2025

Para além da declarada provocação voyeurística que une Bad Girls Go to Hell (1965) e Indecent Desires (1968) – não fosse Doris Wishman o grandioso nome, no feminino, do género (s)exploitation – não parece suficiente olhar estes filmes (bem como a sua relação) à luz da ligeireza da categorização cuja profundidade poderá passar despercebida.

Trata-se de duas mulheres: uma “bad girl” que mata, sem querer, o seu agressor, e que depois foge sem destino; uma “indecent girl” que endoidece devido às sensações corporais que experiencia e cuja origem desconhece – enquanto nós sabemos que um pervertido exerce sobre ela controlo, através de uma boneca.

Antes ainda de nos alongarmos nos desígnios impostos às protagonistas nos dois filmes – pelas mãos de homens demonizados – é essencial clarificar que mulher (Wishman cria um ser unificador, a partir de experiências diversas mas convergentes, com recurso à sua estética e temática) é esta, qual o seu estatuto perante o espectador. Ambos os filmes parecem obedecer às regras que propagam a objetificação e o sexismo: é, de imediato, nos momentos inicias de cada um que vemos fotografias que percorrem a música sedutora, colocadas ao nosso alcance para que nos demoremos nelas, pressagiando histórias de anti-amor repletas de corpos femininos (quase totalmente) despidos.

Uma nudez pericial, que não obedece à visceral explicitude que caracteriza outros filmes do género, mas que está de acordo com o advento do “roughie” – em oposição ao “nudie cutie” anterior –, já bem patente em Bad Girls Go to Hell, mas desenvolvido em Indecent Desires, e que, sendo o reflexo da causticidade de uma artista de evidente extravagância, que vinga num mundo plenamente masculino – não só o da indústria exploitation, mas também o do male gaze (conceptualizado por Laura Mulvey) –, configura uma provocação com uma pitada de auto-crítica, não deixando de ser, ao mesmo tempo, uma reivindicação de liberdade sexual, do corpo feminino que pode e vai ser visto por todos. Não nos esqueçamos da quantidade de fulcrais movimentos de libertação que surgem nesta década, e vemos em Wishman um claro desejo de quebrar completamente com a “recondução ao lar” – tentativa de movimento pós-guerra que visava recuperar o papel feminino na esfera doméstica, já que as funções “masculinas” tinham sido asseguradas por mulheres durante o período da segunda guerra –, na forma como utiliza a casa como um espaço opressivo, efémero, e nunca confortável, mas sempre colocando os objetos do quotidiano em concatenação com mo(vi)mentos impregnados de sexualidade como ato de rebeldia.

Penetremos, agora, no âmago da narrativa. É, nos dois trabalhos, elaborado um díptico que contrapõe duas faces em tensão. De um lado, a mulher que, inicial e falaciosamente, se apresenta num lugar (espaço e vida) estável – Meg (Bad Girls Go to Hell) e Ann (Indecent Desires) surgem lânguidas, felizes, rodeadas de amizade e de amor heteronormativo. Do outro lado, o homem frustrado, incendiário, efusivo, que não vê restrições ao uso do seu poder. Se no primeiro dos filmes evocados esta entidade é coletiva, sendo vários os homens que cruzam caminho com Meg e que, repetidamente e à semelhança uns dos outros, a submetem a violações e agressões, no segundo é um só aquele que detém uma força (mística) que rege o dia-a-dia de Ann (os entrecortes entre os dois são vitais).

Com efeito, ao passo que Bad Girls Go to Hell revela, aparentemente, uma mensagem mais direta e, por isso, mais drástica, mas nem assim menos valiosa – cuidado, que cada homem com quem te cruzas é um perigo iminente! –, Indecent Desires gere melhor o seu poder simbólico com a personagem de Zeb, maníaco, silencioso, perturbado e, principalmente, com a utilização da boneca encontrada no lixo – (primeira) imagem de Ann, correlação cujas conclusões a tirar são imediatas – por ele dominada.

Vemos a mulher exterior e interiormente – não esqueçamos a centralidade dos monólogos pairantes – oprimida pela situação em que se encontra, descredibilizada até ao ponto de ficar sem rumo, estagnada num meio cujas tenções estão fora do seu alcance de perceção. Tanto Meg como Ann renunciam, inclusivamente, ao seu parceiro masculino, procurando em si próprias a verdade que lhes falta, e que parece fugir constantemente – curioso é o aparecimento de Della em Bad Girls Go to Hell, mulher solitária, carismática e potente (mantendo sempre em destaque o seu vigor sexual) com quem Meg possivelmente tem um  momento sáfico e com quem partilha a única confissão verdadeiramente sentida de amor: “I love you too, that´s why I must go”.

Filmes que vão, progressivamente, construindo o estado de loucura e paranoia das suas protagonistas – Meg fugitiva, de identidade fingida (Ellen Green é o seu novo nome), escapando aos detetives que a procuram e Ann, presa em sua casa, assolada por toques invisíveis que conduzem a um diagnóstico de transtorno mental por parte de Tom, o seu companheiro.

Não há esperança a ser fomentada, nem nas porosidades, tampouco nos finais provocantes e inesperados que anulam a ideia, fundamentalmente pessimista, que vai sendo concebida, apenas para a corroborar, ou antes, adicionando-lhe camadas, fazendo dela um prolongamento de mensagens subconscientes de uma frontal sexualidade. Análises algo arrojadas poderão propor (tendo em conta os próprios títulos) que, em Bad Girls Go to Hell, tudo o que vemos acontecer a Meg não passa de uma punição à sua sexualidade desinibida e exacerbada – a tentativa falhada de sedução do marido numa manhã de trabalho –, o que será sintomático de ironia face às expectativas de um “comportamento feminino”. Em Indecent Desires, cultivando a mesma lógica, o comentário recairá sobre o desejo macabro, masoquista, que ocupa (nas profundezas) a vida de Ann e que é tratado, simbolicamente, com recurso aos desconfortos ambíguos de que sofre – consideremos a sugestiva cena de masturbação controlada por Zeb.

A uma, resta-lhe o círculo vicioso, mediado por um surrealismo primitivo; a outra, nada, intercedido pela mesma abordagem. A nós, refletir se a obra de Doris Wishman constitui uma desmistificação da sexualidade feminina – corpo, desejo, limites –, consequentemente, um grito de emancipação, ou se recai numa vitimização exagerada, colocando a mulher num altar sacrificial, sem capacidade de regeneração: se este for o caso, pensemos em todas aquelas que são vítimas de algo que não controlam; não seria, e ainda é, este o estado de coisas para estas mulheres? e, portanto, não será esta uma formulação artística – dentro dum género (e assinado por uma realizadora) com as suas idiossincrasias – deste problema?

Ao proporcionar este debate – e ao ser parte ativa no mesmo, assumindo a sua posição como mulher cineasta –, Wishman está um passo à frente no que diz respeito à abertura e problematização dos temas que envolvem a mulher, o seu corpo, as (i)materiais perseguições que vai enfrentando e as fantasias que cria para as superar.

Laura Mendes